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Beuys – ou o mito, ainda
DATA
12 Fev 2018
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Beuys morreu há mais de trinta anos e, em mais de trinta anos, não se investigou o suficiente sobre o seu legado. O que não resultou do desinteresse ou do desinvestimento nessa empreitada. De facto, sempre houve quem quisesse e quem tentasse compreender Beuys. Porém,…

Beuys morreu há mais de trinta anos e, em mais de trinta anos, não se investigou o suficiente sobre o seu legado. O que não resultou do desinteresse ou do desinvestimento nessa empreitada. De facto, sempre houve quem quisesse e quem tentasse compreender Beuys. Porém, tudo em aberto. Beuys é ainda – até quando? – caso por encerrar, ferida por sarar. Afinal, o que sabemos em 2018 que não sabíamos em 1986?

Esclareça-se, desde já, que o documentário de Veiel pouco ou nada acrescenta a esse trabalho de investigação – ao que tudo indica, nem é isso que se pretende. Trata-se de um exercício fundamentalmente propositivo, que não se aventura para lá da mera hipótese. (É a hipótese deste realizador, neste momento particular.) É o documentário feito ensaio e, portanto, a superação dessa inata necessidade de plenitude – talvez a única saída de Veiel, quando confrontado com tanto e tão rico material de arquivo ou, em última instância, com a complexidade e a falibilidade da montagem que busca o princípio, o meio e o fim de uma história efetivamente vivida. Note-se que a abordagem ensaística, embora se afigure como a opção mais confortável, comporta sempre uma certa dose de risco – e, sobretudo, quando a intenção não está devidamente aclarada.

Acontece que, a dada altura, o encadeamento por associação temática fica suspenso: de súbito, porque sim, um lampejo de linearidade cronológica confunde quem se havia convencido com o diletantismo de até então. Pois bem, perante a incoerência e havendo por que classificá-la, decidir-me-ia imediatamente pela atribuição de duas estrelas – ou de duas estrelas e meia, sei lá, assim uma coisa mais pensada. Porém, divergindo da grande massa crítica, pouco me aflige o desvio, o desequilíbrio ou o devaneio em causa. Por certo, não sou a única na ânsia pelo estremecimento da falha epifânica, dessa queda absolutamente primordial – pela iminência da catástrofe, diria Deleuze. No entanto, e aqui convergindo, já me aflige consideravelmente a ausência de matéria contextualizante (de resto, não tanto quanto essa ideia de avaliação quantitativa, a típica deliberação por estrelas). Beuys parece caído do céu, discípulo de ninguém, feito mestre sem como nem porquê – nenhum espírito livre é tão livre assim. Isto é dizer: então e Steiner, o princípio? Mataré, por aí adiante… e mesmo antes, o princípio do princípio: que é de Goethe, Schiller, Novalis? Ora, fui saber depois. O que não deixa de ser meritório – mérito de Veiel, o estímulo.

É caótico, mas não por isso menos fascinante. É fascinante, mais ou menos fascinante, na medida em que é Beuys. Diga-se, aliás, que o documentário agarra pela presença do artista, essa presença súpera, magnética, xamânica até. Beuys é, por si só, meio caminho andado para Veiel: embora o desígnio seja tudo menos claro, a aposta está praticamente ganha à partida. É provável que o realizador se tenha apercebido disso num momento já adiantado do processo. O que justificaria, quiçá, a reformulação da primeira montagem: segundo o próprio, a versão inicial incluía apenas trinta e cinco por cento de material de arquivo do e com o artista, priorizando o que se havia concebido a propósito, abundando em entrevista, dando a palavra ao intermediário; a versão final, esta que agora nos chega, conta com cerca de noventa e cinco por cento desse material, reduzindo ao mínimo o tempo de discurso indireto (ao ponto de desvirtuar, num ou noutro caso, o contributo do entrevistado).

Beuys domina, apaixona: o olhar cavado e invariavelmente alucinado, o nariz assimétrico, o sorriso imenso, esse que transfigura – uma feição quase cadavérica, visivelmente acidentada, que só vem favorecer o projeto de mitificação. Importa dizer que, em Veiel, Beuys é todo mito: a narrativa mergulha acriticamente nesse mito originário, um trauma de guerra que se supõe fabricado – ou, pelo menos, dramatizado – pelo artista. Crimeia, 16/3/1944: um grave acidente ao serviço da nação, é abatida a aeronave em que segue, pouco sobra do outro militar. Por essa altura, voa como operador de rádio pela Luftwaffe. Ei-lo, literalmente caído do céu – shot into shape, diz – e então salvo pela comunidade tártara, que o havia besuntado com gordura animal e envolvido numa manta de feltro (quando contado pelo próprio, queremos acreditar, só podemos acreditar). Pois que a vida alimenta a arte, a arte alimenta a vida, tudo isso: a gordura no canto da sala, sobre a cadeira, a fábrica de margarina do pai, a teoria da escultura, da determinação pela ação do calor, a aplicação da força, a forma; o feltro em rolo, aquele fato, o piano embrulhado, o judeu a quem se roubou o cabelo, sempre o corpo, a culpa, um ensaio para a cura; em todo o caso, essa presença, o ato performativo, o princípio da comunhão, outra forma de luto, de luta, a gargalhada – a revolução só se faz pela gargalhada, garante. É a arte política, está escrito – mas há outra?

Veiel reanima uma história já contada, mas nunca resolvida – isso de estar à frente do tempo é ser, durante e depois, caso por arquivar. Trata-se aqui do habitual elogio da transgressão, o eterno desdobramento do mito: l’enfant terrible, l’agent provocateur, the clown, dificilmente se resiste. É um documentário sobre a persona antes da obra, 107 minutos do homem que fez o artista – entre fotografia, vídeo e áudio, em alemão ou em inglês, maioritariamente a preto e branco. No fim, uma obra só: a própria vida, a ferida aberta. Der Mann am Haupthebel.

Beuys morreu há mais de trinta anos e, por mais de trinta anos, toda a arte foi Beuys. E se hoje nos arrepiamos, talvez ainda seja – de algum modo, mais ou menos enquanto paradigma, feito axioma de partida.

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