Depois do single Reminiscência, lançado pela ZABRA, uma editora multidisciplinar que se foca na música eletrónica experimental, Carincur apresenta no espaço de criação Desvio (Lisboa) Echoes from a Liquid Memory, uma performance que tem como chão a experimentação audiovisual. Inês Cardoso define-se como artista inter-multi-trans-antidisciplinar. O seu trabalho artístico atravessa a performance, a instalação, o vídeo e a música, explorando ferramentas como a captura, a modulação e a coreografia. Explora a tríade espaço-corpo-mente de forma plástica recorrendo ao olhar e à consciência do comportamento humano.
O espaço começa a ser preenchido por sons frios e metálicos criando uma atmosfera dramática. Surgem vozes etéreas que se vão alongando em loop no vazio e que vão comunicando com sons imbuídos em vários efeitos, entre eles delay e reverb. Ao longo da performance vemos projetada a imagem em vídeo capturada pela câmara que está dentro do aquário – pousado no centro da mesa com os instrumentos e o computador ao seu redor. A imagem está projetada nas costas da artista fazendo com que a sua sombra seja um agente participativo na ação. O som vai-se adensando cada vez mais no espaço enquanto a cadência dos loops vai estabelecendo o ritmo em cena. A música que se vai compondo transpira intimidade. Compõe-se de samples do seu arquivo de gravações (realizadas entre 2018 e 2020) e de sons de vozes, cordas, água, motores e outros materiais. Inês procura “engajar-se na prática e na pesquisa do binómio realidade/ficção explorando a sua biografia, o seu corpo, e o impacto do eu poético na sociedade, na cultura, na vida política e económica dos dias de hoje”.
A dado momento, Carincur começa a encher o aquário com água. A câmara que está dentro do aquário vai filmando este movimento, projetando imagens fantasiosas e descontextualizadas. A projeção destas imagens é tratada de forma plástica, estimulando o sentido da visão. Ao observar atentamente o que está a ser projetado, abstraímo-nos completamente da forma como são criadas aquelas imagens: já não importa que seja o resultado da água a cair no aquário. Importa sim relacionar a realidade criada através da projeção, com os sons que vão habitando este lugar. Podemos olhar para o reflexo da água como metáfora do eu poético, uma vez que a eu-corpo-Carincur está constantemente a ser espelhada pela água. Para criar plasticidade e dinamismo à projeção ao vivo, a artista brinca com as mãos na água e mergulha o seu rosto no aquário. Nos momentos em que está debaixo de água, ouve-se a sua voz amplificada pelos microfones de contacto que estão no fundo do mesmo. O grande plano da sua face torna-se a imagem projetada, porém, é mais do que um grande plano, é na verdade um plano macro de certas zonas do seu rosto: nariz, lábios, cana do nariz, queixo. Estes detalhes são matéria para o imaginário do público. Ao ampliar o seu rosto, a performer poderá estar a fazer um convite à sua intimidade, um convite dirigido ao público, convocando-o a uma escuta atenta que pretende estimular não só a audição, como também a visão, de modo a mergulharmos no universo da sua singularidade.
A linha de pensamento desta ideia vem do seu álbum Sorry If I Make Love With Sound (editado pela ZABRA), onde se refere “uma narrativa muito frágil que se vai afirmando aqui e ali, ora pela sua própria voz, ora pelas colagens de material alheio, dando-nos as pistas mínimas para aceder à intimidade da intérprete.” Parece-me que o imaginário de Echoes from a Liquid Memory vai beber muito a este álbum porque ambos estão numa esfera de inquietação. Há uma vontade de explorar a inquietação, de explorar o abismo, de tocar o fundo. Aprofundando a ideia do convite à sua intimidade, Carincur abre a possibilidade do abraço. A artista convida uma das pessoas da primeira fila do público a abraçá-la, segurando circuitos elétricos que produzem som ao tocar no corpo. De repente, o abraço ganha uma nova qualidade: som. É sem dúvida um gesto transgressor devido às circunstâncias em que vivemos. Trata-se de um desafio, de uma provocação que a artista faz ao espectador. Este gesto junta-se à sonoplastia da performance complexificando cada vez mais a atmosfera criada. Neste universo coabitam sons, imagens e gestos, dando a possibilidade a esses mesmos sons e imagens, de nascerem não só de si, mas também do gesto e do movimento.