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Entrevista com Giulia Damiani: From the Volcano to the Sea
DATA
12 Jan 2021
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AUTOR
Josseline Black
Nesta entrevista, Giulia Damiani partilha as suas reflexões sobre a sua profunda encarnação investigativa ao grupo artístico italiano Le Nemesiache. Damiani define a sua prática como escritora, curadora e dramaturga e está agora a concluir o seu doutoramento no departamento de arte da Goldsmiths University,…

Nesta entrevista, Giulia Damiani partilha as suas reflexões sobre a sua profunda encarnação investigativa ao grupo artístico italiano Le Nemesiache. Damiani define a sua prática como escritora, curadora e dramaturga e está agora a concluir o seu doutoramento no departamento de arte da Goldsmiths University, Londres. O seu trabalho, ao longo dos últimos anos, tem sido pedagógico e artístico, reunindo a elaboração de mitos, magia e as linguagens de evocação e invocação. Damiani faz a conexão entre uma história etérea de rituais na construção da arte feminista e um momento atual que necessita seriamente de um significado suavizado.

 

Josseline Black – Adoraria saber qual foi o seu primeiro contacto com este grupo artístico feminista Le Nemesiache.

Giulia Damiani – Em 2013, estava a estudar no Royal College e a ler sobre o feminismo italiano, enquanto concluía o meu mestrado. Queria ter um verdadeiro encontro com as feministas italianas. Descobri o grupo Le Nemesiache, nome que me soou estranho. Percebi que elas haviam feito um filme nos anos 70, após ocuparem um asilo para mulheres e colaborarem com outros coletivos. Fiquei super fascinada com aquela história. Encontrei o email de uma das mulheres do coletivo. Ela respondeu ao email e deu-me o seu número de telefone. Liguei-lhe e conversámos; e ela era a irmã da fundadora do grupo. Convidou-me para ir a Nápoles. Visitei Nápoles alguns meses depois durante duas semanas. Fiquei no arquivo do grupo, na casa da fundadora, repleta de muita história material e oral. Apresentaram-me sítios de Nápoles onde intervinham. Percebi que havia muita coisa ali que não tinha sido explorada, que não tinha encontrado um lugar no cânone da história da arte feminista italiana. A partir daí, desenvolvi um diálogo com as membros do grupo, visitando-as com frequência. Escrevi a minha tese de mestrado sobre elas e fiz um mapa alternativo da cidade de Nápoles, de acordo com os lugares do Le Nemesiache. Depois, fiz encenações a partir do arquivo. Organizámos uma performance em 2015 enquanto grupo de artistas a trabalhar em conjunto e vivemos com membros do grupo, por isso a ligação tornou-se cada vez mais forte ao longo dos anos. Ao viver com elas e ao tentar interpretar com os nossos corpos o seu trabalho, apercebemo-nos de que havia algo mais ou menos histórico que nos permitia refletir sobre a criatividade das mulheres de hoje.

JB – O grupo de artistas que escolheu para esta encenação é composto apenas por mulheres?

GD – Sim. Fiz uma chamada para me envolver no projeto e uma tornou-se a minha mais longa colaboradora, a Helena Rice. Trabalhámos juntas em várias performances; depois há uma artista vídeo, outra intérprete e uma fotógrafa. Tivemos alguns momentos intensos, que se tornaram muito potenciadores da reflexão sobre o arquivo hoje em dia, criando uma trajetória a partir dos anos 70 e abrindo o trabalho para uma maior manipulação no presente.

JB – Ao trabalhar com o Le Nemesiache e o seu arquivo, que tema ou conversa acaba por reencontrar? Num sentido subjetivo, o que a puxa novamente atrás?

GD – A relação com a paisagem. O seu feminismo foi claramente influenciado pela realidade em Nápoles, mas não de forma limitativa. Os lugares mitológicos na região de Nápoles, profícua em história grega e romana. Há ruínas, mitos, histórias, Sereias, Sibilas, Profetas; figuras femininas que poderiam servir de inspiração ao grupo. Há também a montanha que por vezes se revela vulcão. Os Campos Flégreos, uma das maiores áreas vulcânicas na Europa. Há a baía de Nápoles e as zonas industriais que revelam o projeto industrial e capitalista em Itália. O grupo costumava apelidar Nápoles de “cidade cósmica”. Elas integravam esta paisagem no seu trabalho, através da qualidade visceral da sua escrita. A fundadora do grupo, Lina Mangiacapre, utilizava na sua escrita metáforas com lava. Invocou a lava para voltar a destruir a paisagem atual a fim de gerar algo novo. Tal como a lava, o feminismo pode lembrar-nos de aspetos adormecidos da nossa paisagem terrestre; esta ideia de fermentação que sucede à destruição; um feminismo que é um terramoto, capaz de abalar os alicerces do patriarcado.

JB – Isto está também relacionado com a sua escrita?

GD – Sim, é um tema vasto. Esta experiência multidimensional e multissensorial advinda do trabalho do grupo fez-me perceber que, apenas através duma abordagem igualmente multissensorial e multidimensional, poderia transmitir algo desse trabalho. Isto permitiu-me recorrer à performance e à minha escrita como plataforma para explorar algumas das questões com as quais o grupo estava a trabalhar, e abrir a conversa às ideias de outros artistas e intérpretes.

JB – Envolveu-se numa experiência de coautoria com alguma das mulheres de Le Nemesiache?

GD – Organizámos em conjunto um programa de encenações, no qual o grupo esteve presente a nível curatorial e como apoio. Passámos algumas semanas a trabalhar em conjunto e o grupo partilhou materiais do arquivo em italiano. Foi uma experiência interessante para ver o que se perde na tradução. Foi uma ideia partilhada entre mim e Teresa, a irmã da fundadora. Trabalhei em particular com duas colaboradores e intérpretes; uma colaboradora do Brasil e uma do Reino Unido, que estiveram muito envolvidas com o trabalho do grupo. Infelizmente, Teresa faleceu há dois anos, e ela teria sido a pessoa com quem poderia ter coautorado algo.

JB – Como situaria a abordagem do grupo ao escatológico? Imagino que tenham trabalhado o seu presente através da reconfiguração e cura de um passado. Mas lidariam elas com um futuro para além do fim da história?

GD – Uma das ideias por elas trabalhada é a profecia. Reencontraram a figura da Sibila, que, segundo a lenda da Grécia Antiga, costumava estar sentada perto de Nápoles. Virgílio escreveu sobre ela. Fizeram um filme em 1977 chamado A Sibila, onde parte delas despertou esta figura, fazendo rituais na paisagem. Interessei-me pela profecia como um dispositivo de trabalho. A profecia, do ponto de vista da temporalidade, é uma promessa de uma mudança que pode nunca acontecer; é continuamente adiada para o futuro. É também performativa. Cabe ao ouvinte encarar isso como uma possibilidade para o futuro. Sinto que estou a pegar nessa profecia e a tentar veiculá-la no presente.

JB – Nesta encenação com artistas convidados, houve uma troca verbal contínua; praticaram a profecia em conjunto? Que tipo de profecias geraram, além da esfera Le Nemesiache?

GD – A última peça em que me encontrava a trabalhar antes da COVID, em São Paulo, era sobre uma profetisa chamada Emma B. Era uma tentativa de refletir sobre o tipo de profecias que poderiam emergir da terra e do solo em vez de descer do céu. Uma noção de profecia é que esta é uma mensagem dos céus, de divindades, ou encarnada pela profetisa possuída por uma divindade normalmente masculina. Sem estas figuras masculinas, o que resta à profetisa? Tentámos pensar sobre as profecias que hoje poderíamos invocar a partir do centro da terra. Tivemos dificuldade em traduzir o elemento de lava, pois no Brasil não existem vulcões, portanto esse elemento não tem a mesma ressonância. Com a minha colaboradora Jéssica Varrichio, passámos dias a filmar “enchentes”, que são riachos de água provocados pelas tempestades em São Paulo; não é água da chuva, mas sim dos esgotos. Ficam cheios e sobem à superfície, tornando-se verdadeiros rios na cidade. É algo potencialmente perigoso. Neste caso, a profecia era estar num lugar e tentar encontrar elementos que pudessem contar uma narrativa diferente daquele sítio, invocando diferentes cenários futuros. Filmámo-los e tornaram-se uma força motriz na peça, transbordando e tornando visíveis desejos reprimidos e contradições.

JB – Ao documentar o que estava a emergir do “subconsciente da terra”, identificou padrões que transcreveu depois para uma metodologia de adivinhação?

GD – É interessante pensar se, de alguma forma intuitiva, isto aconteceu durante a peça, pois serviram de pano de fundo às cenas.

JB – Na sua prática de escavação e materialização do arquivo Le Nemesiache, considera-se separatista?

GD – Quando colaboro com outras pessoas, a energia é mais importante. Não tenho uma metodologia na qual os homens são excluídos, o objetivo é canalizar o desejo de criar mundos feministas – para além da leitura essencialista da palavra feminista e do açambarcamento de todas as identidades que identificam as causas dos feminismos.

JB – No catálogo da exposição, há um manifesto “Para a apropriação da nossa própria criatividade”. Que tipo de respostas o público tem perante este texto?

GD – Os visitantes reagem com veemência, muitas vezes não acreditam que isto tenha sido escrito na década de 70. Alguns destes assuntos estão a tornar-se cada vez mais relevantes atualmente. Discussões sobre a prática museológica, o que constitui a arte, a arte amadora: temas para debate. Os visitantes ficam impressionados com a ferocidade do texto.

JB – Em particular isto: “reclamamos espaço e financiamento para intervir em todos os sectores denominados democráticos, mas que ainda nos excluem”. Este manifesto invoca também um certo tipo de economia espacial. Qual foi a sua experiência na conceção da exposição From the Volvano to the Sea na Rong Wrong, em Amesterdão?

GD – Foi um espaço parceiro na organização da exposição, juntamente com If I Can’t Dance, I Don’t Want to be Part of Your Revolution. A diretora Arnisa Zeqo sentiu afinidades com o trabalho do grupo. Foi brilhante trabalhar com uma pessoa tão empenhada. Com as restrições provocadas pela COVID, pouca gente teve autorização para entrar diariamente na galeria. Com esta limitação, a noção de transmissão emergiu no espaço: transmissão do grupo, a prática de transmissão em que nos envolvemos nestes encontros individuais. O espaço da galeria tornou-se uma câmara de ressonância. Organizámos o espaço expositivo tendo em conta diferentes elementos do trabalho do grupo e tentando também ligar o arquivo em Nápoles ao espaço em Amsterdão. É também uma casa, parte do edifício é privado, e o resto é uma galeria. É a junção do espaço doméstico e do espaço público, uma tensão importante no feminismo. Penso que conseguimos criar intimidade com os materiais.

JB – Continuará a trabalhar com o arquivo do grupo Le Nemesiache e que parte deste irá ampliar? Colocou-se a si mesma na linhagem do coletivo. Pretende continuar a posicionar-se como elo transmissor ou quer expandir este papel?

GD – Depende do tipo de profecias que vou encontrando. Ainda há muito a fazer na catalogação, é necessário encontrar um contexto mais público onde o arquivo possa ser depositado, e há a ideia de publicar mais materiais sobre o grupo e levar a exposição sobre o arquivo para outro lugar. Estou interessada em pensar a paisagem com maior profundidade, as metodologias situadas e como o trabalho do grupo Le Nemesiache pode ser relacionado com outros coletivos em todo o mundo. Criar um túnel que parta de Nápoles, das outras crateras do vulcão. Sou inevitavelmente um elo transmissor devido à proximidade que tenho das membros do grupo e da sua história. Ao mesmo tempo, estou também interessada em criar outras ligações e deslocar o projeto. A traição do trabalho original pode também fazer parte do exercício. Pode haver uma forma de lealdade através da traição.

BIOGRAFIA
Josseline Black é curadora de arte contemporânea, escritora e investigadora. Tem um Mestrado em Time-Based Media da Kunst Universität Linz e uma Licenciatura em Antropologia (com especialização no Cotsen Institute of Archaeology) na University of California, Los Angeles. Desempenhou o papel de curadora residente no programa internacional de residências no Atelierhaus Salzamt (Austria), onde teve o privilégio de trabalhar próximo de artistas impressionantes. Foi responsável pela localização e a direção da presidência do Salzamt no programa artístico de mobilidade da União Europeia CreArt. Como escritora escreveu crítica de exposições e coeditou textos para o Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Madre Museum de Nápoles, para o Museums Quartier Vienna, MUMOK, Galeria Guimarães, Galeria Michaela Stock. É colaboradora teórica habitual na revista de arte contemporânea Droste Effect. Além disso, publicou com a Interartive Malta, OnMaps Tirana, Albânia, e L.A.C.E. (Los Angeles Contemporary Exhibitions). Paralelamente à sua prática curatorial e escrita, tem usado a coreografia como ferramenta de investigação à ontologia do corpo performativo, com um foco nas cartografias tornadas corpo da memória e do espaço público. Desenvolveu investigações em residências do East Ugandan Arts Trust, no Centrum Kultury w Lublinie, na Universidade de Artes de Tirana, Albânia, e no Upper Austrian Architectural Forum. É privilégio seu poder continuar a desenvolver a sua visão enquanto curadora com uma leitura antropológica da produção artística e uma dialética etnológica no trabalho com conteúdos culturais gerados por artistas. Atualmente, está a desenvolver a metodologia que fundamenta uma plataforma transdisciplinar baseada na performance para uma crítica espectral da produção artística.
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