“Olhem para mim. Preciso que olhem para mim.” Jesus, o Filho, com texto e encenação de Elmano Sancho, que estreou no dia 15 de Setembro no Teatro da Trindade/Fundação Inatel, abre com a afirmação fundamental da existência humana: Ser visto para existir. Ou a negação da invisibilidade. A permissão para existir (logo à nascença sustentada pelos nossos pais) é condição libertadora da escuridão em que se habita.
Este espectáculo de Elmano Sancho é a Via Dolorosa, a travessia da solidão no caminho para morte, que se desvenda, afinal, num forte apelo a uma vida vivida sem máscaras, sem fingimento, assumida por inteiro, mesmo até às últimas consequências: “Não tive a coragem de me matar. Morri de Tristeza.” Por isso mesmo os três elementos desta Sagrada Família são brutalmente crus e desbocados, ninguém sabe exactamente qual é o seu lugar, uma tremenda frustração trespassa mãe, pai e filho, estando todos conscientes da inadequação aos seus papéis. Sem espaço para qualquer réstia de ilusão, a auto-consciência pode ser um lugar cruel. Trata-se de uma família infeliz, como tantas outras, cujos artifícios encontrados para superar a sua infelicidade resultam numa farsa trágico-cómica. Jesus (Vicente Wallenstein) é o filho consciente do seu absoluto isolamento, esse de, apesar do esforço, vivermos e morrermos sozinhos, por muito que nos custe. Já não sai de casa porque está fatalmente doente, não consegue reconhecer-se, porque nunca ninguém o viu, procura incessantemente a sua identidade, que lhe foi negada logo ao nascer pelos próprios pais. Por Maria, a mãe (Joana Bárcia) que nunca conseguiu aceitar o seu temperamento melancólico e o facto de o filho denunciar o vazio que habita em todos nós, e por José, o pai (Elmano Sancho) cuja única função era a de encobri-lo das exigências projectivas da sua mãe. José é uma espécie de homem espelho. Espelha as necessidades dos membros da família e, de resto, não parece ter sido bem-sucedido. Joana Bárcia, a mãe de Jesus, serve-nos uma interpretação excepcional e implacável, de tal forma que durante todo o espectáculo consegue levar-nos ao nojo, à vergonha alheia, à nossa própria vergonha, ao cúmulo da ironia, à gargalhada, ao desespero, e ao arrepio de um variado leque de emoções, numa empolgante prestação. Este espectáculo, como uma sátira, manda-nos à cara o nonsense de uma existência banalizada pela falta de amor e de ligação emocional entre os membros de uma família, banalizada pela necessidade de sustentação constante de uma imagem ou de uma espécie de fé fabricada pela religião ou por uma forma de obsessão ritual oferecida por uma qualquer rede social. É que querer ser visto encobre um simulacro, ser visto não é ser-se meramente visível, mediato. Para ser-se visto é preciso ser-se olhado e ser-se aceite. Esse é o milagre por que todos continuamos à espera.
Jesus, o Filho, está em cena no Teatro da Trindade/Fundação Inatel até 30 de outubro.
Jini Afonso não escreve ao abrigo do AO90.
Ficha Técnica
Texto e encenação Elmano Sancho
Com Elmano Sancho, Joana Bárcia, Vicente Wallenstein e Ruy de Carvalho (voz-off)
Cenografia Samantha Silva
Desenho de luz Pedro Nabais
Figurinos Ana Paula Rocha
Assistência de encenação Paulo Lage
Coprodução Teatro da Trindade INATEL, Loup Solitaire, Casa das Artes de Famalicão, Teatro Municipal de Bragança Projeto financiado pela Direção-Geral das Artes