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O mundo vê-se melhor no lusco-fusco: João Maria Gusmão na Galeria Cristina Guerra
DATA
25 Mar 2022
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AUTOR
Matteo Bergamini
Lusco-fusco é uma das palavras mais evocativas da língua portuguesa: indica o momento do dia no qual o céu escurece – é a transformação das luzes em trevas. Porém, da mesma forma que indica o anoitecer, indica também o momento oposto do dia, ou seja, o amanhecer. O lusco-fusco é aquele instante em que o olhar se semicerra para se poder ver com máxima acuidade.

Lusco-fusco é uma das palavras mais evocativas da língua portuguesa: indica o momento do dia no qual o céu escurece – é a transformação das luzes em trevas. Porém, da mesma forma que indica o anoitecer, indica também o momento oposto do dia, ou seja, o amanhecer. O lusco-fusco é aquele instante em que o olhar se semicerra para se poder ver com máxima acuidade.

De facto, a arte sempre nos obrigou a afilar os nossos sentidos para a perceber. Só desta forma é que se revela o seu mistério. E é uma sorte quando isso acontece, pois significa que a arte trouxe consigo o seu sentido profundo, captando a nossa atenção e despertando a nossa curiosidade.

Tal acontece quando entramos numa mostra onde, para além dos artefactos, encontramos ainda uma poesia que nos fala enigmaticamente – uma poesia fascinante, curiosa e devidamente exposta, pois que a beleza nunca se esquece de vestir um perfil estético.

Serve isto de prólogo para a exposição de João Maria Gusmão, Lusque-Fusque Arrebol, que se situa perfeitamente à volta das perceções.

Ao entrar na galeria Cristina Guerra, em Lisboa, é importante não esquecer o folheto que o próprio artista escreveu: o guia perfeito para uma série de fotografias que vêm “de uma terra onde não se escreve nem a lápis, nem com aparo, nem a esferográfica, mas a tinta preta de carvão e pincel”. As palavras de João Maria esclarecem também o que é uma roda “presa no eixo de uma parede, que não vai a lado nenhum nem transporta víveres nem passageiros nem bens ou produtos” – a descrição fisionómica perfeita das suas esculturas enigmáticas.

Este conto é, por sua vez, um “lusque-fusque”, uma miragem. Quem fala nele não é o artista, mas uma carantonha que aparece, a cada anoitecer, ao jovem protagonista dessas páginas, o jovem alquimista Fausto. A figura conta-lhemirabolantes histórias de paisagens e objetos esquisitos, entre os quais há uma “casa-cinematógrafo construída num socalco, à beira de uma ribanceira”, que, sem tela, projeta cinema sobre a vista da arriba: nuvens, pássaros, tempestades…

Como a carantonha aparece a cada lusco-fusco da noite, ela cala-se ao chegar do alvorecer da manhã, deixando o rapaz fascinado por ter ouvido tão boas e estranhas estórias. A escuridão renova-se a cada alvorada, com a promessa de uma história ainda melhor por vir.

Seria fácil falar de Lusque-Fusque Arrebol como um conjunto dos materiais que pertencem à prática do artista – os filmes realizados com slides, as esculturas em bronze, as fotografias. Porém, é bem mais do que isso: João Maria Gusmão materializa um imaginário noturno que transporta consigo também traços de causticidade e de apurada ironia.

Enquanto nos parece entrever os labirintos dos contos das mil e uma noite ou as aventuras do alquimista mais famoso da literatura portuguesa – Paulo Coelho –, descobrimos na escrita do artista esboços de humanidade, dos vícios e instrumentos para se orientar na vida. Tudo são reflexões sobre o tempo e o destino.

Gusmão esclarece esses pontos, por exemplo, descrevendo as consequências em utilizar a meridiana [hora de calor mais intenso, ou sesta] como unidade para medir o tempo. Sem corda nem bateria, sem bater do sino ou do alarme, sem contar sequer os minutos, ela possui uma característica: “Se faz sol, faz sombra; se faz chuva, está-se atrasado”, escreve João Maria.

Lendas, sensações mágicas, estupefação acompanham os espectadores no passeio por Lusque-Fusque Arrebol. Outro trecho imperdível na leitura é dedicado às lamparinas, que denunciam a atitude egoísta e sem-vergonha dos homens: “Há uma que se esfrega com excrementos para fazer aparecer um génio porco, assaz generoso, enquanto que outros são mais sovinas de desejos e, assim como assim, ninguém está satisfeito com o que tem, e por isso é que há lamparinas”. Eis por que vemos tanta gente a esfregar merda nos lampiões de génio, ou seja, em desafiar a sorte, mesmo sem se ter a possibilidade de a mudar.

A mostra na Cristina Guerra é uma Wunderkammer onde o artista dispõe as suas esculturas e fotografias de contornos nas paredes cor de laranja, como se estivessem dentro duma película. Toda a exposição acontece num filme fantasmático, através do qual Gusmão amplia a perceção de estarmos numa ficção curiosa que nos fala dum mundo alheio.

A origem mnemónica e espectral da imagem em movimento, e a investigação que compõe o trabalho do artista, vê-se aqui de maneira poética.

A exposição Lusque-Fusque Arrebol, de João Maria Gusmão, está patente até o dia 9 de abril na galeria Cristina Guerra em Lisboa.

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