17 Out 2025
As Vidas Infelizes das Obras de Arte: Philipp Timischl e a Poética do Fracasso
Entrevistapor Alexander Burenkov
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A prática de Philipp Timischl desenvolve-se num mundo onde as imagens se desmoronam sob o seu próprio peso, onde os média se recusam a permanecer no seu nicho e onde pinturas, vídeos e fragmentos arquitetónicos começam a agir como protagonistas melancólicos e exaustos. Nas suas mãos, a própria obra de arte parece oscilar entre o devir e o desvirtuar, sempre “em greve”, sempre a meio caminho de algo mais. Enraizada na pintura, mas nunca limitada a ela, a sua obra expande-se pelo vídeo, pela escultura, pelo texto, pela arquitetura e pela própria retórica da exibição, criando aquilo a que poderíamos chamar híbridos pós-digitais: formas contaminadas pela estética do glitch, do kitsch e do breakdown, mas também impregnadas de um humor seco e de uma onda emocional que complicam qualquer leitura puramente formal.
O que emerge nas exposições de Timischl, seja na recente exposição Hauser & Wirth Invite(s) ou na sua série contínua de Hard Paintings, é um interesse constante pela instabilidade de imagens, objetos e sujeitos nas condições contemporâneas de saturação mediática. Refere-se frequentemente às suas obras como “presas entre formas fixas”, deliberadamente "confusas na sua identidade formal”. Uma parede independente pode funcionar como um ecrã de vídeo, uma pintura pode comportar-se como uma personagem aborrecida que se recusa a representar, e uma falha digital pode perfurar a superfície da sedução pictórica. Esta indefinição dos média, sugere Timischl, reflete tanto uma incapacidade pessoal de se manter fiel a um formato único como uma condição cultural mais ampla moldada pela fluidez das imagens digitais, onde as antigas hierarquias entre pintura e imagem em movimento, texto e superfície, objeto de arte e suporte arquitetónico já não se sustentam. No entanto, a prática de Timischl não celebra apenas esta fluidez. As falhas, fissuras e corrupções que permeiam a sua obra introduzem um contraponto, uma sensação de atrito ou mesmo de fadiga. Numa cultura dominada por interfaces contínuas e imagens hiperprodutivas, as suas superfícies gaguejam, falham ou estagnam. O fracasso aqui não é tragédia, mas método, uma forma de recusar o efeito polido do capitalismo digital. Segundo o artista, há uma espécie de sinceridade no colapso, uma revelação da estrutura quando as coisas deixam de funcionar. O momento em que uma obra de arte entra em colapso, quando admite exaustão ou incompletude é, para Timischl, o momento em que começa a falar. Este sentido da fala não é metafórico. Muitas das suas obras adotam vozes, registos emocionais ou estados corporais. Um título como Hard Painting (Super Sick) encena uma pintura como se estivesse a passar por uma doença, enquanto uma escultura reconta a sua própria biografia como uma parede de construção abandonada transformada numa obra de arte relutante. Noutras partes, os guaxinins vomitam em interiores decorativos, os culturistas posam com partes iguais de aspiração e desespero, e os ecrãs digitais comportam-se como atores temperamentais. Estes gestos revelam aquilo a que poderíamos chamar as vidas descontentes das obras de arte, a sua recusa em serem meros objetos de exibição, a sua oscilação entre confiança e embaraço, glamour e grotesco. Neste sentido, a estética pós-digital de Timischl opera tanto contra a autonomia modernista como contra a ironia pós-moderna. Os seus híbridos, glitches e interiores kitsch não se limitam a criticar a cultura da imagem à distância; habitam o seu esgotamento, a sua superprodução, a sua comédia desajeitada. Entaladas entre o colapso e a persistência, entre a suavidade digital e o colapso material, as obras de Timischl propõem uma poética da estagnação e do fracasso, uma forma de a arte sobreviver ao presente, recusando-se a representá-lo demasiado bem.
Alexander Burenkov: Combina frequentemente pintura, vídeo, texto e escultura, obras “encaixadas entre formas fixas, confusas na sua identidade formal”. Como pensa o hibridismo mediático na sua obra? Será este hibridismo uma condição nascida da cultura digital, ou uma crítica a esta, ou ambos?
Philipp Timischl: Para mim, o hibridismo é tanto um reflexo da condição digital como uma necessidade pessoal de desorganizar a forma. Nunca consegui cingir-me a um único meio, talvez porque a minha prática inicial na pintura sempre pareceu incompleta, ou porque a cultura digital tornou tudo tão fluido que cingir-me a um único formato parece artificial. Então, desfoco-os. Não se trata de colapsar os meios, mas sim de os deixar alimentar-se mutuamente. Por vezes, o elemento digital destabiliza a pintura, falhas, legendas, interrupções e, por vezes, a pintura está lá apenas para abrandar as coisas. Esta tensão parece próxima de como as coisas são agora.
Alexander Burenkov: Em Hauser & Wirth Invite(s) apresenta trabalhos em que há glitches de vídeo, superfícies rachadas, tintas ou texturas que falham. Como concebe a falha, o acidente ou o colapso, não como um problema, mas como um material ou sensibilidade generativa, em relação à estética pós-digital?
Philipp Timischl: A falha é basicamente a minha categoria estética. Não de uma forma trágica, mas antes como um estado de espírito. Há um tipo de sinceridade no colapso que as imagens polidas e resolvidas não conseguem oferecer. Quando as superfícies falham, revelam a sua estrutura. Em Hauser & Wirth Invite(s), muitas obras imitam a retórica da exposição, mas resistem à suavidade. Fissuras, texturas concretas, imagens corrompidas, tudo isto fala da instabilidade da forma, ou talvez apenas do seu esgotamento. Interessa-me aquele momento em que uma obra de arte deixa de tentar ser impressionante e simplesmente diz "alguma coisa”.
Alexander Burenkov: O que o atrai no espaço estético entre o kitsch, a beleza e o grotesco, como os texugos a vomitar, os interiores em mau estado ou os ecrãs LED utilizados nos anúncios comerciais? Por que razão continua a voltar a isso?
Philipp Timischl: Porque me parece real. Aquele espaço onde o gosto se torna questionável é onde tudo o que é interessante acontece. Não cresci com "bom gosto” e sempre me senti um pouco fora de sintonia com os códigos da alta arte e da sofisticação. Por isso, exagero-os, distorço-os. Os texugos são fofos e repugnantes. Os interiores decorativos são sedutores, mas também um pouco desesperantes. É sobre o que acontece quando a aspiração se torna visível. Este desconforto, algo entre o embaraço e a confiança, parece familiar. E talvez seja também uma forma de desafiar a forma como a classe e a estética estão tão intimamente ligadas.
Alexander Burenkov: Há uma sensação recorrente de inércia, de figuras em estase, de obras em existência "infindável". Será esta inércia um sintoma de sobrecarga pós-digital? Ou uma resistência à sobreprodução de imagens?
Philipp Timischl: Provavelmente ambos. Interesso-me por aquele momento imediatamente anterior a algo acontecer. ou imediatamente posterior, quando nada muda de facto. As figuras no meu trabalho (pessoas, guaxinins e pinturas) muitas vezes não fazem grande coisa. Estão cansadas, paralisadas, vazias. Num mundo de constante produtividade visual, esta imobilidade começa a parecer suspeita. Mas talvez seja também uma forma de resistir à velocidade. Gosto de obras de arte que nos encaram sem revelar nada. Como se estivessem desiludidas. Ou em greve.
Alexander Burenkov: A exposição fala de “vidas descontentes das próprias obras de arte”. Como vê as obras de arte como agentes — vivas, em decomposição, narrando-se a si próprias?
Philipp Timischl: Costumo tratar as obras de arte como personagens. Falam, queixam-se, mudam de emprego. Por vezes, querem deixar de ser pinturas e tornar-se noutra coisa: um DJ, um polícia, uma drag queen, um agente imobiliário. É em parte uma brincadeira, mas também uma forma de lidar com o modo como as obras de arte circulam, a pressão para serem legíveis e intemporais. Dar-lhes voz permite-lhes queixar-se, confundir-se ou opor-se ao seu papel.
Alexander Burenkov: Títulos como Hard Painting (Super Sick) e Hard Painting (Sleep) sugerem estados emocionais ou corporais. Como pensa sobre o afeto no seu trabalho, especialmente através de superfícies ou colapsos?
Philipp Timischl: Os títulos vêm normalmente de coisas que ouço ou escrevo na minha "app" do Bloco de Notas. Podem ser dramáticos, poéticos e, muitas vezes, bastante longos. Penso no afeto como algo que se infiltra, como uma superfície que não consegue manter a sua forma. Uma "pintura dura" que se desmorona. Um monocromático manchado. Quero que estas obras, especificamente, pareçam estar a passar por algo, mesmo que seja apenas um estado de espírito, algo superficial, mas ainda assim presente.
Alexander Burenkov: Como conceptualiza a memória, o passado, o colapso virtual, como a parede a “deslizar de volta” para a sua posição passada?
Philipp Timischl: A peça a que se refere é uma escultura independente, metade parede de vídeo, metade pintura, criada para funcionar como parede no espaço. Conta a sua própria história, como fazia parte de um estaleiro de construção, foi despedida e acabou na galeria como obra de arte. Quando o ecrã fica cinzento, é como se estivesse a regressar a um papel passado, não por nostalgia, mas como parte da sua transformação contínua. A obra oscila entre superfície e estrutura, imagem e objeto, sem nunca se fixar totalmente numa identidade.
Alexander Burenkov: Como decide quando misturar o digital com o analógico, ou quando deixar que um domine?
Philipp Timischl: Não sigo muito regras para isso, depende do trabalho. Por vezes, o digital simplesmente infiltra-se, ou a superfície material assume o controlo. Gosto quando o digital tenta imitar algo físico e falha. É nesta estranheza que reside o trabalho. Quero que os média se comportem mal.
Alexander Burenkov: Qual o papel da figura humana ou animal no seu trabalho dentro de um mundo pós-digital?
Philipp Timischl: As figuras são frequentemente duplos, não retratos. Os guaxinins funcionam como conchas vazias que posso encher. Os culturistas talvez sejam ambiciosos, talvez estejam perdidos, carregam um desejo muito visível de transformação nos seus corpos. Interessam-me as subjetividades que estão cansadas de ser sujeitos, que se querem tornar noutra coisa ou que não se comportam como seria de esperar. Figuras que agem fora do seu carácter, que desrespeitam deliberadamente as regras.
Alexander Burenkov: As suas obras costumam parecer engraçadas, resignadas, exaustas. De onde vem este tom, sobretudo em relação à classe social, à homossexualidade ou à biografia?
Philipp Timischl: Provavelmente por ter crescido num contexto em que nem a arte nem a homossexualidade pareciam caminhos viáveis. Humor é sobrevivência. Penso muito em "class drag" e na exposição do capital cultural sem que me aproprie totalmente dele. Esta mistura de confiança e insegurança. Os meus trabalhos reclamam, posicionam-se, entregam pouco. Isso faz parte do seu encanto.
Alexander Burenkov: A instalação das obras — com o recurso a paredes, molduras ou elementos arquitetónicos — faz parte do trabalho?
Philipp Timischl: A exposição faz sempre parte da obra. Molduras, pedestais, alcatifas, paredes de LED, todos participam. Vejo a instalação como uma estrutura narrativa. Onde o espectador se posiciona, como se movimenta, o que é visível ou obscurecido, tudo isto importa. Por vezes, a obra quer ser vista. Às vezes, quer esconder-se. Tento coreografar essa ambivalência.
Alexander Burenkov: Como pensa sobre o tempo, espera, repetição e decadência no seu trabalho?
Philipp Timischl: O tempo está embutido nas obras. Vídeos em “loop”, imagens paralisadas. Uma pintura pode simplesmente repetir um momento para sempre. Gosto quando as obras de arte parecem estagnadas, cansadas ou hesitantes. Como se estivessem presas num ecrã de carregamento. Quero que os espectadores sintam esse atraso, essa sensação de que algo pode acontecer, mesmo que nunca aconteça.
Alexander Burenkov: Existem novas tecnologias ou meios— possibilidades ainda não exploradas da IA, dos média generativos, dos biomateriais — que gostaria de explorar?
Philipp Timischl: Usar a IA no meu trabalho é também uma forma de falar sobre trabalho. É como terceirizar parte do processo para algo que não tem consciência sobre o que está a fazer, mas que ainda assim produz algo. Há um paralelo com os assistentes ou com os sistemas de autoria delegada em geral, só que aqui o assistente é invisível, incansável e um pouco estúpido. Os resultados são muitas vezes imprecisos, o que me agrada. Isto levanta questões sobre o esforço, o valor e que tipo de trabalho ainda associamos à criatividade. Não uso a IA para ser eficiente. Utilizo-a para ver o que acontece quando o trabalho se torna automatizado e o resultado ainda tenta passar por intencional.
BIOGRAFIA
Alexander Burenkov é um curador independente, produtor cultural e escritor sediado em Paris. O seu trabalho estende-se para além das funções curatoriais tradicionais e inclui a organização de exposições em espaços não convencionais, enfatizando frequentemente a multidisciplinaridade, o interesse pelo pensamento ambiental e as sensibilidades pós-digitais, abrangendo projetos como a Yūgen App (lançada na Bienal de Design do Porto em 2021), uma exposição num ginásio ou uma exposição online sobre serviços na cloud e modos alternativos de educação, ecocrítica e estética ecofeminista especulativa. Destacam-se os seguintes projetos recentes: Don't Take It Too Seriously na Temnikova&Kasela gallery (Tallinn, 2025), Ceremony, o projeto principal da 10ª edição da feira Asia Now (juntamente com Nicolas Bourriaud, Monnaie de Paris, 2024), In the Dust of This Planet (2022) no ART4 Museum; Raw and Cooked (2021), juntamente com Pierre-Christian Brochet no Russian Ethnographic museum, São Petersburgo; Re-enchanted (2021) na Voskhod gallery, Basel, e muitos outros.
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