Aramis Navarro (n. 1991), radicado em Zurique e St. Gallen, baseia a sua prática na lógica linguística dos algoritmos, explorando os seus resíduos místicos. Na Kunst Halle Sankt Gallen, o artista trata os algoritmos não apenas como ferramentas ou ameaças, mas como artefactos culturais, refletindo a forma como os moldamos e como moldam as nossas crenças mais profundas. Investiga os paralelos entre código e oração, lembretes e feitiços, redes neuronais e rituais de adivinhação. A linguagem, nas suas mãos, torna-se mutável, sagrada e estranha. As letras transformam-se em sigilos sagrados, a escrita transforma-se em escultura e os fragmentos de lógica digital em estruturas poéticas. Esta entrevista com Navarro aprofunda as dimensões filosóficas e materiais da sua obra. O que significa depositar fé em sistemas que não conseguimos compreender plenamente? Como é que os modelos de linguagem estão a reconfigurar a nossa relação com o significado, o poder e o sagrado? Ao falar com Navarro, entramos num espaço onde a crença não é banida pela tecnologia, mas renasce através dela - metade profecia, metade falha.
Alexander Burenkov: O título da exposição, 'algorithmic-mega-death-superspell.exe', é tão provocador como enigmático. O que é que esta combinação de termos sugere sobre o papel dos algoritmos nos nossos sistemas de crenças contemporâneos?
Aramis Navarro: Os algoritmos moldam o nosso comportamento. Se isso acontece conscientemente ou não, é irrelevante para mim neste contexto. Como mandamentos ou dogmas, os algoritmos transportam um poder normativo que direciona subtilmente a tomada de decisões e a ação. O termo “mega-death” refere-se a um superlativo fictício: uma espécie de morte simbólica da autonomia, talvez mesmo o desaparecimento silencioso da individualidade. A extensão “.exe” interessa-me como referência a programas executáveis, a ideia de que uma exposição poderia funcionar como um ficheiro que corre sozinho quando acedido. Idealmente, algo se instala no espetador: uma nova linha de pensamento, um momento de desorientação, uma falha no sistema, o que seria um sucesso!
AB: A cultura pós-digital confunde frequentemente os limites entre o místico e o tecnológico. Como vê a convergência entre magia e algoritmos no seu trabalho?
AN: Sinto-me atraído por esta justaposição porque o que parece antigo ou familiar pode frequentemente oferecer uma lente mais nítida e precisa sobre o presente. A colisão entre sistemas mágicos e algorítmicos mostrou-me que estes domínios aparentemente não relacionados partilham mais entre si do que se poderia esperar. O que mais me fascina é a forma como a linguagem funciona em ambos os contextos, não apenas como uma ferramenta de comunicação, mas como uma força operante. Passa a ser uma função, um código, um comando. Uma camada adicional que atua para além do que é dito.
AB: Em Defixio, reimagina-se antigas tábuas de maldição como placas fundidas em alumínio – o metal da era digital – inscritas com um código Python inventado, inspirando-se no costume milenar das tábuas de maldição: inscrições esculpidas em finas folhas de chumbo, enterradas perto de túmulos ou templos, com a intenção de enfeitiçar as pessoas. Transfere estas práticas ocultas para placas de alumínio, nas quais incisa fragmentos de algoritmos fictícios. O que o atrai nesta sobreposição entre os rituais mágicos antigos, as noções do sagrado e a sintaxe contemporânea das tecnologias digitais?
AN: Interessam-me as formas de linguagem ligadas ao desejo, à intenção e à função. Numa perspetiva metafísica, considero surpreendentemente próximo o paralelo entre as práticas pagãs como os insultos e os algoritmos que nos permeiam e nos influenciam online. Usar um representante para exercer influência à distância, desligado do espaço ou do tempo, não é diferente de um ritual vudu. Uma lógica semelhante opera nos centros tecnológicos atuais, como Silicon Valley. O mecanismo é comparável: uma linguagem invisível que deseja agir.
AB: Descreve a língua como material e método na sua prática. Poderia explicar como navega neste duplo papel da linguagem, particularmente em obras como 'Inflected Introspection', onde as suas reflexões digitadas, pensamentos, conceitos e observações quotidianas são arquivadas em papel reciclado de estúdio e depois preservadas em resina, ecoando a lógica dos fósseis de âmbar?
AN: Quando uso a linguagem como material, abordo-a como um escritor ou um poeta: ela torna-se substância. Como método, a linguagem pode servir como ferramenta conceptual, enquadramento ou forma de estruturar o pensamento. Interessam-me as diferentes dimensões da linguagem, talvez sobretudo pelo seu potencial visual e metafórico. Em 'Inflected Introspection', isso é muito claro. Não distingo o que acaba dactilografado no papel, trata-se de arquivar notas manuscritas sem hierarquia. Por vezes, o conteúdo é poético, outras vezes filosófico, técnico ou simplesmente descritivo. O que me interessa são as brechas, esses momentos em que a linguagem desliza, se curva ou abre outra forma de ver a própria comunicação. Só preservo estas notas em resina depois de cumprirem o seu propósito no desenvolvimento de ideias ou obras posteriores.
AB: Grande parte do seu trabalho parece girar em torno da preservação, seja de línguas fossilizadas em resina ou de escritas gravadas em metal. O que significa para si a preservação em tempos de efemeridade digital e de constante rotatividade algorítmica?
AN: Preservação, para mim, significa potencial - a hipótese de algo ser lido de forma diferente noutro contexto. Agarrar-se a um fragmento não significa fechá-lo, mas sim criar a possibilidade de reencontro. Sobretudo numa época em que o conteúdo é hiper-efémero, constantemente reorganizado ou apagado por algoritmos, interessa-me compreender o que significa inscrever algo materialmente. Sejam notas fossilizadas em resina ou algoritmos gravados em metal, o ato consiste em congelar o tempo e o significado, para que estes possam ressurgir com uma nova relevância.
AB: Vê modelos de linguagem como o ChatGPT como colaboradores, ferramentas ou algo mais ambíguo no seu processo criativo?
AN: Para mim, estes claramente uma ferramenta, mas também um prenúncio. Os modelos de linguagem não são apenas recursos funcionais, são fenómenos que refletem algo sobre o momento presente. No seu funcionamento, espelham-se passados coletivos, padrões de pensamento e ideologias. São tanto instrumento como presságio, dispositivos técnicos que já projetam a sombra do que está para vir.
AB: A sua prática envolve frequentemente processos analógicos, como a dactilografia em papel reciclado, mesmo quando lida com temas digitais. Como é que esta tensão analógico-digital molda o seu pensamento?
AN: Essa tensão surgiu naturalmente, em parte por necessidade. É apenas a forma como trabalho. O espaço entre o analógico e o digital não é para mim uma contradição; é um terreno incrivelmente fértil. Cria atrito, incerteza, desvios e é exatamente aí que as coisas começam a ficar interessantes.
AB: O termo “oráculo” é recorrente no texto da sua exposição. De que forma entende os algoritmos como sistemas oraculares, e que tipo de verdades – ou ilusões –estes nos oferecem?
AN: Se nos concentrarmos nos geradores de texto, baseados em grandes modelos de linguagem, estes são essencialmente videntes. Dependendo dos dados, estes mesmos sistemas podem ser utilizados para prever todo o tipo de coisas. Os humanos sempre quiseram ver o futuro, uns mais do que outros, ou pelo menos ver um pouco mais longe do que o seu vizinho. As previsões meteorológicas costumavam parecer especiais e agora todos têm acesso a elas. Mas se eu pudesse prever o tempo exatamente daqui a um ano, isso seria uma forma de poder. Acredito que os LLMs (large language models) serão cada vez mais utilizados para previsões em muitas áreas. A questão mais urgente é saber se servirão o bem comum.
AB: 'Algorithmic Overlord' explora a forma como os sistemas digitais moldam a perceção, a interação e a tomada de decisões. A série centra-se no papel da linguagem e do código na vida quotidiana, destacando como os algoritmos influenciam o comportamento humano de formas subtis. Com este projeto, aborda as formas subtis como o código molda o comportamento. Como aborda a transformação destas estruturas invisíveis em visíveis sem se tornar excessivamente didático?
AN: Tento não deixar o humor de fora da equação. Através da linguagem, procuro esboçar uma imagem na mente do espetador, uma imagem que possa abrir uma nova perspetiva. Nem sempre funciona da mesma forma, mas essa imprevisibilidade faz parte do apelo. Deixa espaço para interpretação.
AB: Superfícies espelhadas e formas expositivas transformadas em retábulos expositivos surgem em obras como o hiper-santuário de Ratking. Pode falar sobre como usa a linguagem visual para evocar ambientes e interfaces digitais como espaços de reverência ou ritual?
AN: É bastante simples. Misturo dois elementos que à primeira vista são díspares, neste caso a estética de superfícies espelhadas e formas semelhantes a telas com retábulos. Nesta conexão, estabelece-se uma nova afirmação, indissociável da nossa realidade atual. Cada elemento transporta as suas próprias associações, mas é precisamente nesta fusão que algo de novo emerge, tornando os ambientes digitais visíveis como espaços de reverência ou ritual.
AB: Há uma corrente palpável de fé, superstição e misticismo no seu programa. Acha que a tecnologia substituiu a religião na psique cultural atual, ou tornou-se apenas uma forma dela?
AN: Ainda estou a explorar essa questão. Por vezes, penso que a tecnologia assume uma nova forma, menos dogmática e estruturada por diferentes hierarquias. Outras vezes, adota claramente formas familiares e antigas. Nesta perspetiva, a nossa era atual é incrivelmente fascinante, uma vez que estas questões se tornam cada vez mais urgentes. Vejo também uma desilusão generalizada: as promessas da digitalização e as suas consequências perturbam muitas pessoas. E a incerteza, em última análise, sempre impulsionou o comportamento humano.
AB: Descreve alguns dos seus fragmentos semelhantes a códigos como “comandos silenciosos” – linguagem sem troca. Como interpreta este silêncio e o que diz sobre a agência num mundo orientado por sistemas?
AN: Entendo estes “comandos silenciosos” como uma linguagem sem adversário, sem feedback, sem idas e vindas. Funcionam de forma unidirecional, mas, ainda assim, cumprem a sua função porque fazem parte de um sistema construído para gerar efeito, não para uma comunicação real. Este silêncio demonstra um novo tipo de agência: a ação já não tem de ser consciente ou interativa, é automatizada e codificada. Isto levanta grandes questões sobre o controlo e a responsabilidade num mundo cada vez mais governado por sistemas.
AB: Por fim, o que significa “acreditar nos nossos dispositivos” para si? E como acha que a o seu trabalho artístico pode reformular ou complicar essa crença?
AN: Acredito que o simples questionamento do papel e da função dos nossos dispositivos hoje em dia teria sido suficiente para levar alguém à fogueira noutra época. O contexto, ou a perspetiva, a partir do qual algo é visto é crucial. É também interessante como o termo “crença” se encaixa aqui perfeitamente. Talvez estes dispositivos sejam os guardiões de uma evolução ainda à nossa frente – emocional, cognitiva ou talvez até biológica – simplesmente pela presença de algo mais inteligente, independentemente de escolhermos acreditar nela ou não.