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A batucada de Ernesto Neto no MAAT
DATA
12 Jul 2024
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AUTOR
Julia Flamingo
Surdo, cuíca, chocalho, pandeiro, agogô, repique: não é necessário saber o vocabulário dos instrumentos de cor para entrar na brincadeira do Ernesto Neto.

Surdo, cuíca, chocalho, pandeiro, agogô, repique: não é necessário saber o vocabulário dos instrumentos de cor para entrar na brincadeira do Ernesto Neto. Não é preciso ser brasileiro, saber tocar, nem ter ritmo. Desde maio, quando o artista carioca inaugurou a instalação Nosso Barco Tambor Terra no MAAT, chegar ao museu é deixar-se levar pela disritmia multicolorida do batuque, independentemente da sua idade ou nacionalidade. Alegria pura em forma de obra de arte!

A festa de abertura foi uma catarse coletiva. Músicos vindos do Brasil se juntaram a rodas de samba e de bateria de Lisboa ­– eram algo como sessenta percussionistas profissionais e amadores – e, logo nos primeiros minutos de exposição, o público organicamente tomava o espaço da instalação e agarrava os instrumentos para contribuir com a batucada. A obra que toma toda a extensão da Sala Oval é formada por uma malha de crochê feita com centenas de metros de chita (tecido de algodão estampado muito popular em todo o Brasil), que forma uma tenda gigantesca. Marca das obras de Ernesto Neto, os pesos e contrapesos com formas de gotas são o que sustentam essa malha no ar. Como explica o curador da exposição, Jacopo Crivelli Visconti, o seu trabalho sempre evidencia a gravidade: o centro da terra, a força vital.

Dentro do pavilhão-cabana tudo é sensação: som, cheiro, toque, acolhimento. Além das dezenas de instrumentos presos aos fios de crochê, sementes e grãos de feijão, milho e café preenchem vasilhames, cascas de árvore cobrem o chão, e especiarias como cúrcuma, cominho e canela exalam cheiro pelo ar. Nas obras de Neto, arte é espaço e coletividade; a comunicação entre seres humanos e seres não-humanos existe para além da linguagem e da racionalidade. Suas esculturas introduzem a ideia do poder curativo da arte, porque nos mostram novas formas de nos relacionar. Ele coloca em evidência a sabedoria do corpo, o conhecimento ancestral, o protagonismo da natureza.

Ernesto Neto já falava sobre antropocentrismo, cosmovisões e conhecimento indígena antes mesmo de virar pauta necessária nos quatro cantos do mundo da arte. Questionamentos que acompanhavam a sua produção há mais de 30 anos fervilharam a partir do seu encontro com os índios Huni Kuin, em 2013, população de 7500 pessoas que habita parte do estado do Acre, no norte do Brasil. “Eles me fizeram questionar a minha ação sobre a terra, meu conhecimento sobre plantas e entender que é somente através do autoconhecimento que a humanidade pode encontrar sua cura”, disse Neto durante a nossa entrevista em 2019, pouco depois da abertura da sua grande individual na Pinacoteca de São Paulo, Sopro. A convivência com tais xamãs resultou em instalações gigantescas como Um Sagrado Lugar, que integrou a mostra principal da 57a Bienal de Veneza, em 2017, para o qual ele levou um grupo de indígenas para realizarem performances ritualísticas.

No começo de sua carreira, nos anos 1980, a preocupação de Ernesto Neto estava voltada para conceitos como o peso, a gravidade, o volume, a transparência, e a relação de tudo isso com o corpo. Nos anos 1990, a sua pesquisa se expande para o corpo coletivo e, assim, suas obras viram verdadeiras composições arquitetónicas que envolvem diversos indivíduos num só espaço. Por vezes, como é o caso de GaiaMotherTree, exposta na estação de trem central de Zurique, em 2018, a proposta é um tanto menos enérgica do que a batucada: um ambiente para que transeuntes possam parar, relaxar e respirar. Experiências artísticas raras em que realmente nos deixamos levar pela atmosfera de descontração, suavidade e prazer.

Nosso Barco Tambor Terra está patente no MAAT, em Lisboa, até 7 de outubro de 2024.

BIOGRAFIA
Julia Flamingo é jornalista e pesquisadora especializada em arte contemporânea, nascida em São Paulo. É fundadora da plataforma digital Bigorna (@bigorna_art), que tem como missão usar linguagem simples e mediação para aproximar públicos da arte contemporânea. É redatora da rede global de curadores de arte Arpool.xyz, e curadora e escritora do grupo português Cultural Affairs. Julia foi jornalista de arte e crítica da revista Veja São Paulo e contribuiu para celebrados projetos culturais como o 4Cs, financiado pelo Programa Europa Criativa, SP-Arte e Bienal de São Paulo. É formada em jornalismo pela Universidade Mackenzie e em história pela PUC-SP, e tem mestrado em Estudos Culturais na Universidade Católica Portuguesa de Lisboa.
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