article
À conversa com Maria Marques Moderno, autora da Capa do Mês
DATA
16 Jan 2025
PARTILHAR
AUTOR
Laurinda Branquinho e Maria Miguel Café
Dos sonhos e da esperança nasce uma cama – Maria Marques Moderno mostra-a pela primeira vez na Capa do Mês da UmbigoLab. Por entre sussurros, Maria desvenda o que está por baixo do lençol, percorrendo novamente o caminho que fez, com uma cama de gesso, pelas ruas frias de Liege.

Dos sonhos e da esperança nasce uma cama – Maria Marques Moderno mostra-a pela primeira vez na Capa do Mês da UmbigoLAB. Por entre sussurros, Maria desvenda o que está por baixo do lençol, percorrendo novamente o caminho que fez, com uma cama de gesso, pelas ruas frias de Liege. Moderno ilumina os simbolismos dos objetos quotidianos, as marcas de vida e morte que neles deixamos impressas. Instintiva e ritualista, desbrava tanto caminhos físicos como imateriais. Esta conversa é tida a três, num círculo de confidência que apenas o conforto da cama e da amizade oferece.

Maria Miguel Café: Sei que combinamos conversar hoje, mas estou a ficar com tanto sono… só me apetecia deitar com vocês e dormirmos as três juntas, tão juntinhas que acabávamos no mesmo sonho. Querem deitar-se aqui a meu lado? Às vezes as coisas vêem-se melhor de baixo para cima, na horizontal.

Maria Marques Moderno: Que lindo! Eu por acaso estou deitada, já estamos sincronizadas.

Laurinda Branquinho: Eu também estou comfy com uma mantinha por cima.

MMC: Só faltam os sonhos e a esperança. Com o que sonhas, Maria?

MMM: Sonhar acordada é o meu sonhar preferido. Faz parte de uma criança minha, viva ainda. A culpa de estar constantemente a sonhar acordada é sempre da vontade. Quando estou a dormir os sonhos são diferentes, sonho a cores e sempre com pessoas que estão na minha vida, que me dizem coisas. Tenho um caderno onde aponto quem surge mais e menos, e tento perceber o que as mensagens querem dizer.

LB: O sonhar acordada vem sempre da vontade, da esperança?

MMM: Sim. Quando quero, quero muito. Gosto de trazer os sonhos para o mundo real, que se manifestem do interior para o exterior. A vontade é a materialização da Esperança.

LB: Sonhaste com esta cama?

MMM: Não sonhei com ela, mas ela surge de uma vontade – é a concretização de muitos desejos e mesmo não estando pronta para sair, sai de muleta e anda assim meio coxa. Mas no fim não me dá o que preciso: não me consigo deitar nela.

MMC: Nunca estás sozinha nos teus sonhos de olhos fechados. E de olhos abertos? Nos registos desta peça estás sempre acompanhada, pela cidade e a luz, pelas amigas que te ajudam a arrastar a cama por todo o lado…

LB: E que se preocupam com a cama, como se também fosse delas.

MMM: Estou sempre acompanhada, em todo o lado. A cama é minha, mas às vezes as pessoas deitam-se ao meu lado, nas camas reais, as que estão nos quartos. Mesmo sozinha estou acompanhada. A cama é de todos. Fui eu que a fiz, tem a minha altura, mas não a minha largura. É uma cama de corpo e meio, dá para uma pessoa se aconchegar ao meu lado.

LB: Dá para duas pessoas, mas sem dar, não te consegues deitar nela… achas que a cama surgiu nesta altura por estares longe da tua cama, daquela que fica no teu quarto? Consigo ver uma relação entre o lugar onde estavas (longe de casa, noutro país) e o objeto que construíste, uma cama, sem colchão ou estrutura estável para te deitares. 

MMM: Sim, nunca estive fora de casa durante tanto tempo. Este projeto surgiu quando estava em Erasmus, em Liege (Bélgica), onde morei durante 6 meses e estava sempre muito frio, porque era inverno. Não era uma cidade muito confortável, era hostil. Não me lembro bem como é que a cama surgiu, mas tenho quase a certeza que veio dessa necessidade de conforto, de um sítio que te consiga aconchegar, que te abrace. Também estava sempre muito escuro e a cama veio iluminar um bocadinho isso.

MMC: As velas que acendes na cama dão então para duas coisas: aquecer e pedir desejos.

MMM: As velas acho que materializam o desejo. Aquecem e iluminam. Gosto quando as velas estão só acesas, de olhar para elas e não pensar em nada. Acho que estamos sempre a pensar em muita coisa e, às vezes, estar numa cama é não pensar em muita coisa. Gosto desse lugar, onde tudo está silencioso. Surgiu também de uns Anjos que, quando era mais nova, a minha mãe punha no meu berço e na minha cama (até ter uns 5 ou 6 anos). Quatro anjinhos, um em cada ponta da cama, como se protegessem o espaço onde dormia. Então quis concretizar isso: tornar a cama num espaço sagrado, protegido.

LB: Que lindo! Mesmo frágil, está protegida dentro de um círculo de fogo, quentinho. Mas porque a levas para a rua?

MMM: A cama é um lugar de conforto e de intimidade, mas também onde as pessoas adoecem e morrem. Como é um lugar tão vulnerável e íntimo, queria contrastar com o exterior. É íntimo, mas não tem de ser forte, pode ser frágil: a fragilidade e a intimidade andam de mãos dadas. A cama é um sítio que é para estar dentro do quarto, no interior, não é para estar no exterior. A minha ideia era que ela fosse uma espécie de luz lá fora.

MMC: Porque a levas por vários sítios? Estavas à procura do sítio certo ou o próprio movimento do caminhar e de a carregar no corpo cria em si algo de ritualista que vive por si?

MMM: Não sei, acho que isso surgiu com o movimento. Encontrei um carrinho de mão, meti a cama, e ela ficou com rodas, conseguia andar, e comecei a levá-la pela estrada, como se fosse um carro. Havia vários sítios onde queria que a cama estivesse. Queria muito que fosse ao pé do Rio Meuse, por onde passava todos os dias. Estava só a ir ter com o rio, parando nalguns sítios que faziam sentido, sempre de uma maneira intuitiva.

LB: Parece que querias que a cama fizesse o esforço que o teu corpo também fez durante a tua estadia em Liege, que ganhasse corpo, que fosse aos mesmos lugares que tu.

MMM: Sim, acho que de certa forma a cama acabou por fazer o caminho que eu fazia todos os dias da minha casa até à faculdade. Eu andava sempre a pé porque a cidade era pequenina, então passava pelo mesmo caminho várias vezes e estava sempre atenta. Foi intuitivo trazer a cama para os sítios que eu conhecia, para a cama fazer o que eu fazia. Ocupar território e confrontá-lo.

MMC: E como sabias que já tinha acabado a tua caminhada?

MMM: Quando cheguei à ponte em cima do rio. Não atravessei, fiquei a meio.

MMC: Foi lá que a deixaste?

MMM: Não, deixei-a num parque, no exterior: é aí que pertence. No dia seguinte nevou. Dois palmos de neve. A água voltou a ir ter com ela, noutro estado. O vento não apagou as velas, a neve sim. A cama é tão gulosa quanto eu, quer sempre mais.

MMC: Parece quase que a neve anunciou o fim, assentou-a no solo da rua onde pertence, apagou as velas, como se sentisse que já tinha todos os sonhos e a esperança que precisava – já estava protegida. As velas nas pontas parecem uma espécie de pista aérea, um sítio onde se aterra, avisam onde deve ir o corpo. Mas não há espaço para o corpo. Parece sempre haver uma dualidade, íntimo e exterior, rua e quarto, quente e frio, fogo e neve.

MMM: Acho que esses contrastes estão presentes no meu trabalho de várias formas. Foi a primeira vez que vi neve assim, na cidade, e penso que a cama teve um fim bonito.

LB: O que sentes em relação ao seu desaparecimento? Fizeste-a para materializar sonhos, mas ela acabou por desaparecer pela condição em que estavas. Nunca a conseguirias trazer para Portugal, sabias que a ias deixar quando a começaste a fazer. É uma ação que adivinha a tragédia…

MMM: Os desejos e a esperança podem desaparecer na sua forma material, mas nunca vão desaparecer mesmo. Sinto que às vezes tem de haver sacrifícios e tenho de deixar as coisas irem. Sabia logo desde o início que se a construísse não a ia conseguir transportar, mas às vezes não é sobre possuir as peças. Até hoje não sei se a cama continua lá ou não, se calhar já não, mas também não quero descobrir, quero aceitar que era esse o seu destino.

LB: E qual o teu destino, para este ano?

MMM: Não sei. As coisas vêm intuitivamente e acabo por saber onde tenho de ir no tempo certo.

MMC: E se pudesses pedir um desejo?

MMM: Estou neste momento em São Miguel, na ilha mais bonita do mundo, onde está muito nevoeiro. Não vejo nada a um palmo de distância. Hoje pela primeira vez desde que cheguei esteve muito sol e via-se tudo, o mar e o horizonte, as crateras e as lagoas… desejo ver as coisas no seu todo com elas são. Se tiver sorte.

MMC: É simbólico que estejamos a ter esta conversa contigo rodeada por água. Como a cama ficou.

MMM: A cama ficou insular. O insular da ilha de dentro.

LB: Isso é muito lindo… Isso, isto…

MMC: Fiquei embalada com a história da ilha e do nevoeiro e do sol… pintaste um quadro tão bonito que acho que é desta que adormeço. Vou fechar os olhos. Querem juntar-se? Mesmo longe umas das outras sei que nos vemos nos sonhos.

LB: Muito, quero muito.

MMC: Vou acender as velas, aqui está frio. Uma para mim, uma para a Laurinda, uma para ti, Maria. E a última?

MMM: Para o mar. Para a água. Para todos os outros. Os que estão na cama comigo.

PUBLICIDADE
Anterior
article
A Natureza Aborrece o Monstro de Alexandre Estrela na Culturgest
15 Jan 2025
A Natureza Aborrece o Monstro de Alexandre Estrela na Culturgest
Por Mariana Machado
Próximo
article
Um corpo no Mundo, de Juliana Matsumura
21 Jan 2025
Um corpo no Mundo, de Juliana Matsumura
Por Maria Inês Mendes