Como começar?
Esta é a pergunta que imponho. Assim como a Denise Ferreira da Silva, co-autora e pensadora interdisciplinar da exposição Corpus Infinitum, numa das referências primordiais da exposição, o seu livro A dívida impagável (2019). Patente até o dia 25 de setembro no Museu d’Art Contemporani de Barcelona, Corpus Infinitum procura compreender o que seriam dos nossos pensamentos se eles fossem guiados somente pelos elementos fundamentais. A exposição, que também é assinada pelo artista Arjuna Neuman, apresenta uma série de filmagens experimentais, que exploram aquilo que somente pode ser descrito enquanto uma estética material, que emerge ao lado da negridade[1], como um guia para o nosso engajamento crítico sobre o pensamento moderno.
A dúvida primordial com a qual Ferreira da Silva molda a introdução da sua narrativa em A dívida impagável permite explorar outros horizontes e linguagens que não se apoiam na sequencialidade e no determinismo da ontoepistemologia colonial. Neste contexto, a coletânea de ensaios que circundam a poética negra feminista, percebe factualmente a falha sistemática da justiça face aos corpos e territórios negros, que só é vislumbrada enquanto um sujeito racial subalterno. Assim, se faz necessário intervir na lógica de entendimento violência racial, pois é imprescindível reconfigurar “ao nível do simbólico a violência total (colonial) que sustenta a expropriação (monetária e simbólica) da capacidade produtiva de terras e corpos não-europeus”[2]. Nesta ingerência, implica-se o questionamento, então, como recomeçar?
A intervenção propõe uma crítica metafilosófica às bases do pensamento moderno (desde os finais do século XIX) aliado a um modo de intervenção estética. Para tal, propõe-se uma mudança radical na compreensão do espaço-tempo. Uma vez que, esta seria a única possibilidade de afastar-nos do entendimento objetivo da subjetividade perpetuado principalmente por Immanuel Kant e as suas instituições puras após a separação cartesiana do mundo.
O que acontece é que se o tempo e o espaço, como são entendidos no mundo ocidental moderno, fossem suspendidos, o que existiria? Como podemos iniciar o nosso caminho sem a mesma linearidade ontoepistemológica que sustenta a matriz “colonial, racial e cisheteropatriarcal e a violência indiferente que a mesma permite em apoio ao Estado capital”[3]?
É a partir desta dúvida fulcral que Ferreira da Silva e Neuman apresentam três filmes experimentais, nomeadamente; Serpent Rain (2016), 4 Waters − Deep
Implicancy (2016) e Soot Breath // Corpus Infinitum (2020). Cada uma destas obras considera o Humano (homem, sujeito, humanidade) através dos quatro elementos fundamentais, o fogo, a água, o ar, e a terra que subsiste como guião fundamental da jornada que abandona a linearidade ontoepistemológica colonial.
Para apresentar a trajetória proposta pelos artistas é preciso destacar a equipa de produção que possibilitou a exibição dos filmes, afinal nesta temporada do MACBA, apresentam-se o epítome da qualidade das assemblages, digna de montagens vistas somente nas melhores instituições artísticas ao redor do mundo.
Entretanto, vamos voltar ao nosso caminho.
Serpent Rain (2016), que já foi exibido no DocLisboa em 2017, é o primeiro dos filmes expostos ao público em Corpus Infinitum. Numa sala escura de piso macio, a chuva da serpente surge como um prelúdio da narrativa suspensa que constituir-se-á na exposição.
No filme, os artistas extrapolam a ausência do tempo para apresentar a exploração dos corpos e da Terra enquanto duas faces da mesma lógica neoliberal, que se sustentam a partir do aproveitamento abusivo dos recursos, tanto humanos quanto naturais. Tal exploração, segundo Ferreira da Silva e Neuman, enraíza-se diretamente a nossa noção de valor, tanto ética quanto económica, que está intimamente ligada à nossa conceção linear do tempo. Uma vez que tais noções de valor são justificadas pela lógica perpetuada durante a ontoepistemologia propagada pelo nosso entendimento linear do tempo. Este entendimento só é possível pela nossa preferência à imaterialidade do tempo, que contamos em datas, horas e segundos, ao invés da materialidade, como pelos fósseis (exemplo utilizado pelos artistas). Tal predileção pela imaterialidade do tempo sugere uma lógica imutável de apreciação dos factos. Que, segundo os artistas, só poderá ser transformada se a linha narrativa que conhecemos for extinguida e o seu valor abstraído.
A abstração, portanto, segue enquanto procedimento principal de apreciação da exposição. Ao adentrar no recinto côncavo dedicado à 4 Waters − Deep Implicancy (2016), exibida anteriormente na Berlin Biennale 10, o espetador é convidado a aprofundar-se na reapreciação do valor considerando a possibilidade de conduzir-nos ao que existe sem as relações pressupostas pelas relações concebidas na linearidade do tempo material através da água, o elemento basilar de quatro ilhas presentes no filme; Lesvos, Haiti, Ilhas Marshall, Tiwi.
Esta reflexão íntima, leva o espetador até Soot Breath // Corpus Infinitum (2020), um filme dedicado à ternura. Que evoca a sensibilidade radical que aprendemos com a escuta da pele, do calor, e com a escuta dos ecos. Onde impera o questionamento, pode a ternura dissolver a violência?
Ao encerrar o ciclo expositivo de maneira a propor uma reflexão externa, o filme também apresenta a destruição causada pelo rompimento da barragem controlada pela empresa Vale S.A. em Brumadinho no estado de Minas Gerais no Brasil, no ano de 2019. Considerado o segundo maior desastre industrial do século e o maior acidente de trabalho (culposo) do Brasil. Este filme, também questiona através das vozes dos corpos que sobreviveram à catástrofe como os humanos presumem o valor dos corpos e da natureza, enquanto peças que constituem a produção do capital.
Corpus Infinitum é uma exposição a não se perder, e essencial para a vivência na contemporaneidade. Como vamos viver se só conseguimos sobreviver na linha imaterial do tempo criada pela lógica do capital moderno? Há de se suspender, extrapolar e recriar o caminho do tempo. Para começar a contar a nossa história, há de se recomeçar.
[1] O termo negridade é implicado neste texto de acordo com a semântica utilizada pela autora Denise Ferreira da Silva, no seu livro A dívida impagável (2019). No entanto, ainda existem outros termos como negritude ou negrícia que apesar de não serem sinónimos semânticos, operam no mesmo campo de significantes. Para saber mais, indico o artigo Ferreira, F. L. (2006). “Negritude”, “Negridade”, “Negrícia”: história e sentidos de três conceitos viajantes. Via Atlântica, (9), 164. Universidade de São Paulo.
[2] Ferreira da Silva, D. (2019). A Dívida Impagável: Oficina de Imaginação Política e Living Common. p.39.
[3] Ferreira da Silva, D. Neuman, A. (2023). Corpus Infinitum. Museu d’Art Contemporani de Barcelona.