Na segunda etapa do ambicioso projeto O Museu Fora de Si, intitulada A Vida Imóvel, somos convidados a explorar a interação entre as obras da Coleção Municipal de Arte de Sintra, entre as peças provenientes de outras coleções do Município, assim como entre as obras de Fábio Colaço e Pedro Cabrita Reis na exposição patente até o dia 14 de janeiro de 2024 na Quinta da Ribafria. A exposição reúne uma variedade de obras e objetos que tanto representam, quanto funcionam como elementos do quotidiano, adquiridos em contextos de interação cultural, que associam-se a partir da premissa da natureza-morta.
A natureza-morta, majoritariamente encontrada na pintura, floresceu nos Países Baixos no início do século XVI, contando com contribuições de pintores alemães e franceses, tendo reverberado também em menor escala em Espanha e Itália. Motivos de natureza-morta eram frequentes em manuscritos e pinturas dos anos 1400 e 1500, muitas vezes simbolizando qualidades religiosas. No século XVII, apesar de comissionadas no limiar do escopo cristão, as pinturas continuaram a carregar significados sociais moralizantes, como em Still Life with a Skull and a Writing Quill (1628) de Pieter Claesz. O termo que designa o género apresenta duas variantes, nomeadamente natureza-morta nas línguas latinas e vida imóvel nas línguas anglosaxónicas. Em ambos os casos, a terminologia que batiza o género refere-se à representação daquilo que não se move, consequentemente do que está morto.
A curadoria, realizada por Victor dos Reis, ainda faz um paralelo com o período no qual as naturezas-mortas floresceram com o crescente aparecimento de gabinetes de curiosidades nas famílias da aristocracia europeia. Nas palavras do curador “Combinando botânica, zoologia e mineralogia, para referir apenas três domínios da história natural, e um olhar atento à cultura material do quotidiano, considerada até aí sem valor estético intrínseco, a natureza-morta – em inglês, still life – tornou-se um elaborado exercício estético e artístico em torno da dimensão vital do mundo à nossa volta, seja ele imóvel, suspenso ou apenas expectante”.
Este exercício acerca da dimensão vital do mundo à nossa volta, nos faz questionar enquanto visitantes da exposição, aquilo que Heidegger chamou de uma “iminência que ameaça”. E, o que é esta certeza propulsora materializada nos objetos expostos? Sim, ela mesma, a morte.
Mas, como falar sobre a morte se nós ainda não morremos? Descartando o pretensiosismo que acompanha o assunto do ensaio, é um fato constatarmos que somos seres lançados para a morte, onde a propulsão de vida invariavelmente acontece pois temos a morte como o nosso horizonte.
Ou seja, nós humanos somos seres de projeto, pois justamente temos a morte como uma pedra nos nossos calçados. Que, entretanto, estamos sempre a sentir, mas nunca vamos conseguir nos livrar. E, então, qual é a consequência prática desta condição terrível? Criamos a dualidade: a vida e a morte, onde enterramos pessoas ao lado de tigelas de cerâmica, construímos mastabas e posteriormente pirâmides, embalsamamos corpos imóveis, pensamos sobre o paraíso, elaboramos um inferno, saqueamos cidades, construímos cidades e guardamos objetos.
Guardar objetos e colecioná-los em vida é um ato de morte. Um ato verdadeiramente humano, que constitui hoje uma interessantíssima exposição na Quinta da Ribafria, em Sintra. A partir de fósseis, cerâmicas, cartas perdidas destinadas ao futuro, corais e um Xanax de ouro, assim como diversos outros objetos, somos convidados a pensar sobre a vida imóvel, enquanto sentimos na pele os lampejos da nossa natureza humana.