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IRL Stories: Ao ritmo de Alvin Collantes
DATA
21 Jun 2021
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AUTOR
Rita Couto
O mundo ultrapassou longos períodos de isolamento face à pandemia global que, até à data, causou mais de três milhões de mortes. Espaços culturais encerraram indefinidamente os seus palcos, pistas de dança e galerias, deixando toda uma indústria criativa em risco de sobrevivência. Que impacto…

O mundo ultrapassou longos períodos de isolamento face à pandemia global que, até à data, causou mais de três milhões de mortes. Espaços culturais encerraram indefinidamente os seus palcos, pistas de dança e galerias, deixando toda uma indústria criativa em risco de sobrevivência. Que impacto tiveram estes tempos na relação dx artistx com a sua Arte e o mundo?

IRL Stories retrata como performers pela Europa se estão a adaptar a estes tempos de mudança radical. Dada a crescente digitalização de tudo o que nos rodeia e a atual crise global de experiências IRL (in real life), a série reflete sobre identidade e resiliência na comunidade artística através de um olhar íntimo sobre novas perspetivas. Cada história é fotografada em médio formato e escrita pela artista portuguesa Rita Couto, inclui um ensaio pessoal seguido de uma entrevista centrada no processo criativo de cada artista e a utilização de meios alternativos para comunicar com o seu público.

IRL Stories: Ao ritmo de Alvin Collantes. Berlim, 2020-2021. © Rita Couto.

À medida que crescemos, aprendemos a comunicar de diferentes maneiras, desde a força do pensamento até à intimidade física. Uma simples saudação é uma destas formas e a reciprocidade de tais gestos leva-nos também a fazer sentido de nós próprios. Durante estes tempos de isolamento, a tecnologia prosperou como nunca, com apps e serviços digitais a preencher a falta de interação presencial. As pessoas têm continuado a procurar formas de permanecer conectadas — tanto online como offline. Eu própria procurei essa ligação na minha comunidade, mantendo-me em contacto com amigos, colegas e conhecidos que me inspiram diariamente.

Uma vez, durante o primeiro confinamento em 2020, decidi participar numa sessão de movimento guiada pelo artista filipino-canadiense Alvin Collantes, com quem me encontrei pela primeira vez numa performance ao vivo em fevereiro. Este foi, de facto, o último evento em que participei antes da pandemia se instalar. Alvin tinha estado a oferecer estas sessões para partilhar a sua prática de meditação com um círculo de amigos. Paralelamente, liderava Dose of Pleasure, sessões de meditação em movimento através de donativos para quem quisesse dançar livremente na sua casa — um verdadeiro throwback de 45 minutos à pista de dança.

IRL Stories: Ao ritmo de Alvin Collantes. Berlim, 2020-2021. © Rita Couto.

Ao iniciar online a sessão com Alvin, fui guiada pelo seu vocabulário único e pela articulação peculiar de palavras, sensibilizando a minha atenção para os elementos terrestres à minha volta e em mim: a minha respiração, o ar ao meu redor, a temperatura do meu corpo, a luz de uma vela perto de mim, a frequência sonora da sua playlist e, claro, os meus pensamentos. A meio da sessão, foi-me pedido que visualizasse a minha criança interior: «Observa como brinca de forma apaixonada, como se move livremente e como se conecta de volta a ti». Tal experiência despertou a minha paixão em documentar histórias da comunidade artística em que me insiro, o que levou à criação da série IRL Stories.

IRL Stories: Ao ritmo de Alvin Collantes. Berlim, 2020-2021. © Rita Couto.

Com o intuito de melhor conhecer o universo de Alvin, continuei a assistir às suas sessões online e, mais tarde, na vida real. Em pessoa, as sessões são mais prolongadas e provocam um tumulto de emoções, desde um simples aquecimento até ao êxtase puro. A participação nesta prática tem sido extremamente libertadora e bastante nostálgica. A playlist preparada por Alvin, bem como as suas colaborações com DJs convidados estão fortemente ligadas à cultura da disco, dance music e techno que, dado o estado atual da vida noturna em Berlim, fez maravilhas para muitos de nós. No entanto, este não é simplesmente um formato onde se possa dançar ou aprender a dançar. O modo apaixonado como Alvin nos guia à descoberta do nosso ritmo através da meditação em movimento permite-nos a experiência da encarnação, para além do físico e do consciente. Especialistas em movimento e em expressão corporal referem-se à encarnação* como um aspeto subjetivo da consciência do corpo. É considerado um termo abrangente do espetro das artes dedicadas ao corpo e à mente, tais como yoga, dança, meditação e artes marciais; também conhecido como somatics, de soma — que significa o corpo entendido por dentro.

IRL Stories: Ao ritmo de Alvin Collantes. Berlim, 2020-2021. © Rita Couto.

Dose of Pleasure rapidamente se tornou num movimento global, com sessões muito frequentadas a partir de casa ou em locais ao ar livre. Inspirada ao ver a iniciativa de Alvin crescer de forma sustentável em plena pandemia, decidi documentar o seu percurso e todas as facetas que englobam o seu trabalho.

*No texto original, encarnação refere-se a embodiment [the representation or expression of something in a tangible or visible form].

IRL Stories: Ao ritmo de Alvin Collantes. Berlim, 2020-2021. © Rita Couto.

Rita Couto – Vamos ao essencial: Qual é a tua relação com o movimento e a expressão corporal?

Alvin Collantes – A dança sempre fez parte da minha vida. Nos anos 90, todos os verões nas Filipinas, eu e os meus primos fazíamos números de dança para o aniversário da minha avó, assim como no Natal e em todas as ocasiões familiares. Eventualmente, a minha relação com o corpo e o movimento espoletou quando estava na faculdade, ao procurar uma forma de canalizar uma resposta aos meus sentimentos e emoções. Comecei a ter aulas de ballet e de dança, o que me deu muito espaço para expressar. Apaixonei-me por línguas que promovem a liberdade no corpo. Gaga, por exemplo, é uma linguagem de movimento com origem em Israel, no final dos anos 90, pelo coreógrafo Ohad Naharin, que se baseia na ativação da consciência e em ouvir o corpo a um nível profundo por meio de imagens ricas, informação multifacetada e livre movimento.

A aprendizagem da expressão corporal e do movimento ensinou-me muito sobre a entrega e a necessidade de espaço para a intuição, mas também acerca da verdadeira natureza do meu potencial. Para mim, chorar, rir, gritar também é movimento. Ao permitir que as emoções fluam pelo meu corpo, compreendo como a dança pode ser catártica, delicada, orgásmica e fortemente curativa para a mente, o corpo e o espírito.

IRL Stories: Ao ritmo de Alvin Collantes. Berlim, 2020-2021. © Rita Couto.

RC – De que forma é que o teu percurso pessoal se tem refletido no teu trabalho?

AC – Cresci nas Filipinas a servir orgulhosamente a Igreja desde os meus cinco anos. Apesar de viver numa casa cheia de amor, passei por uma batalha pessoal comigo mesmo. Quando saí do armário, lutei por conciliar a minha orientação sexual com a minha fé. Dentro da comunidade gay, também lutei para encontrar aceitação enquanto experienciava racismo, discriminação, vergonha e rejeição. O desejo de me integrar levou-me a viajar por muitos países, aprendendo novas culturas e submergindo-me em muitas comunidades na esperança de encontrar um lugar onde pertencesse. Após anos de procura, a minha ligação com a dança tornou-se o fio condutor que tece estas experiências em conjunto, quer fosse dançar no metro de Nova Iorque, dançar Gaga nas praias de Tel Aviv ou atuar com a KDV Dance Ensemble num dos locais mais emblemáticos de Berlim — a Funkhaus.

IRL Stories: Ao ritmo de Alvin Collantes. Berlim, 2020-2021. © Rita Couto.

A descoberta de comunidades de dança e espaços queer tornou-se um catalisador no processo da auto-aceitação. Estes espaços radicais permitiram-me celebrar todas as minhas crenças, paixões e práticas sem me colocar em nenhuma caixa específica. Ao ser capaz de exprimir a minha raiva, tornei-me mais confortável na minha pele e aprendi a abraçar as minhas imperfeições da forma mais autêntica possível.

RC – O que te levou a iniciar Dose of Pleasure e como se tornou um movimento?

AC – Dou aulas de Gaga em Berlim há dois anos e, desde então, tem-se formado uma comunidade a partir desta prática. Quando a pandemia começou e o primeiro confinamento entrou em vigor, decidi criar uma plataforma para manter o contacto com as pessoas. Não para ensinar dança, mas como uma forma de conexão e partilha, um meio para gerar movimento. Com estas sessões, eu queria ajudar os outros a sentirem-se plenos e confiantes neste momento sensível. Dose of Pleasure surgiu como uma prática de movimento guiado, que combina Gaga, poesia, dance music e raving. Usamos o poder do groove para enfrentar resistência, resolver bloqueios e aceitar a nossa espontaneidade. Entretanto, no início da primavera do ano passado, ofereceram-me uma residência no Dock11, um estúdio de dança em Berlim, para poder continuar a liderar as sessões online e, a partir daí, o movimento começou a crescer.

IRL Stories: Ao ritmo de Alvin Collantes. Berlim, 2020-2021. © Rita Couto.

Quando o verão chegou, as restrições locais atenuaram, permitindo atividades ao ar livre, pelo que pude levar esta iniciativa aos parques de Berlim. A primeira sessão começou com um grupo de cerca de dez pessoas no Tempelhofer Feld [antigo aeroporto nazi no centro da cidade, transformado num parque público]. Depois, com o apoio dos meus amigos, através do passa a palavra e de um patrocínio da Soundboks, que me ofereceu duas colunas de palco, as sessões cresceram para uma multidão de mais de 100 pessoas em locais icónicos ao ar livre, como o Treptower Park e o Drachenberg [montanha artificial feita de escombros da Segunda Guerra Mundial].

É realmente inspirador presenciar o êxtase das pessoas durante as sessões. E o ritmo de cada um é diferente, todos temos o nosso próprio percurso e desafios na vida, mas quando deixamos o nosso corpo responder livremente ao que ouvimos, começamos a ligar-nos à nossa própria história, ao nosso próprio ritmo. Ao mesmo tempo, penso que é uma experiência incrível partilhar um espaço juntos, como se fossemos um só, e ainda manter a nossa individualidade. Esse é o melhor feedback que levo por ter criado esta iniciativa, ao ver como as pessoas se apropriam do seu próprio ritmo. Como facilitador nesta prática, aprendi muito com a experiência, pois o movimento reflete muito o que precisamos neste momento.

IRL Stories: Ao ritmo de Alvin Collantes. Berlim, 2020-2021. © Rita Couto.

IRL Stories: Ao ritmo de Alvin Collantes. Berlim, 2020-2021. © Rita Couto.

RC – Como foi possível tornar esta prática sustentável em plena pandemia?

AC – Dose of Pleasure prosperou numa pandemia adaptando-se às restrições em vigor. Durante o inverno, o movimento evoluiu através de uma aplicação chamada Mixlr [silent disco app], onde as pessoas podiam participar a partir de qualquer lugar e sem a necessidade de um ecrã. Em termos da prática em si, não é necessário estar perto de alguém para a tornar uma experiência enriquecedora, porque a energia não é medida pela distância ou pelo toque. Partilhar energia tem muito a ver com dar e receber de onde quer que se esteja no espaço. Assim, a prática torna-se sustentável porque vai ao encontro das medidas de distanciamento por natureza. É para ti, por ti e contigo mesmo.

Ultimamente, a iniciativa mudou para um sistema de membership, onde os participantes podem fazer parte de uma comunidade global explorando coletivamente movimento e expressão corporal, com acesso a todas as sessões e a um extenso arquivo de conteúdos e de pesquisa.

IRL Stories: Ao ritmo de Alvin Collantes. Berlim, 2020-2021. © Rita Couto.

RC – Como imaginas o teu projeto a crescer a partir daqui?

AC – Embora Dose of Pleasure seja um tributo à pista de dança, atraindo uma multidão imbuída do mesmo espírito, vejo a iniciativa a acolher gente de todos os estilos de vida, incluindo aqueles que não estão tão em contacto com os seus corpos. Apesar das nossas próprias crenças, opiniões políticas e antecedentes, o meu objetivo é proporcionar um espaço seguro onde possamos partilhar uma linguagem que nos une a todos. À medida que o projeto cresce, tenho um forte desejo de levar esta prática para novos lugares, incluindo ao Canadá e às Filipinas, onde cresci. No futuro, vejo a iniciativa a celebrar o tecido cultural destas cidades, em colaboração com DJs locais BIPOC e LGBTQIA+, artistas e mediadores. Imagino um trabalho de inclusividade na co-criação das sessões, permitindo que vozes e corpos se expressem de forma livre, segura e sem juízos de valor. Embora as sessões possam tornar-se muito diferentes de cidade para cidade, a essência permanece: a de dançarmos juntos ao nosso ritmo!

IRL Stories: Ao ritmo de Alvin Collantes. Berlim, 2020-2021. © Rita Couto.

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