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Is it a light at the end of the tunnel, or is it an oncoming train? — Midlife Crisis no Cosmos de Francisco Correia
DATA
06 Mar 2024
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AUTOR
Benedita Salema Roby
A nossa relação com o fim aparenta estar intimamente ligada à nossa relação com o infinito. Dos dualismos que o modernismo alimentou, bebendo do copo dos axiomas cristãos, talvez esse espaço liminar entre o efémero e o eterno seja, hoje, das maiores angústias da condição humana.

A nossa relação com o fim aparenta estar intimamente ligada à nossa relação com o infinito. Dos dualismos que o modernismo alimentou, bebendo do copo dos axiomas cristãos, talvez esse espaço liminar entre o efémero e o eterno seja, hoje, das maiores angústias da condição humana. A representação do Cosmos, em Midlife Crisis, de Francisco Correia, funciona como um prelúdio desse vínculo quase-melancólico, entre um passado que cessa de se actualizar e um futuro asséptico, polvilhado com doses de fantasia.

Na sua primeira exposição individual, inaugurada a 22 de Fevereiro na Galeria NAVE, Francisco Correia apresenta seis obras pictóricas e uma escultórica onde o Universo surge como o significante comum a todas elas. O artista introduz-nos este imaginário para refletirmos sobre a crise de meia idade, isto é, sobre o conflito interno entre espaço, tempo e corpo (ou matéria).

A crise de meia idade, como alega Francisco Correia na folha de sala escrita pelo próprio, “é um fenómeno que acontece entre os 40 e os 60 anos, tratando-se de um período de análise retrospectiva no qual se é assolado pela nostalgia, desejo de rejuvenescência, e um desencanto generalizado com o presente, entendido como sério, aborrecido, ou reles”. Pois bem, porque nos fala um artista de vinte e sete anos acerca de uma crise que aparentemente ainda lhe escaparia por, pelo menos, treze anos? Na verdade, podemos considerar a possibilidade de, hoje, essa crise anteceder a meia idade: a ameaça da realização de um futuro, como prometido por um passado ainda iminente —a juventude—, congela qualquer manobra de emancipação no presente. Consequentemente, a existência das mais novas gerações pode ser pautada por uma série de crises “de qualquer idade” das quais a escapatória só parece possível através da leveza cómico-poética do artista.

O Cosmos é representado através de um imaginário futurista — predominantemente masculino, tal como a crise de meia idade — onde sob fundos negros surgem planetas com tonalidades de tal modo vibrantes que aparentam irradiar luz. Os planetas irrompem cada tela a distâncias destoantes e emergem — sobre o penetrante e fosco negro da tinta acrílica que toma conta dos suportes — recorrendo à colagem. Entre a pintura e a colagem; entre a cor e a escuridão; entre o marcador, o grafite e a tinta acrílica. As dualidades de que são feitas essas escolhas na composição material e pictórica das peças aparentam actuar como um preâmbulo aos antagonismos comportados tanto pelo Universo, como pela Midlife Crisis. O Cosmos e o imaginário a ele associado compreendem uma série de binómios que oferecem o mesmo sentimento de crise, induzido pela “meia idade”, ou hodiernamente por “qualquer idade”: uma comoção petrificante entre uma possibilidade e o seu inverso imediato. Com efeito, a exposição de Francisco Correia, através desta mise-en-scéne cósmica produz mais dicotomias do que utopias. O simbolismo do Cosmos incita um imaginário povoado pela dualidade: entre ciência e fantasia; entre o início e o fim; entre a realidade e a ficção; a vida e o sonho. Isto deve-se sobretudo ao facto do universo representar o “espaço” onde toda e qualquer convenção perde a sua utilidade. Independentemente dessa desvinculação com os postulados que hoje definem a realidade, há uma correlação entre espaço e tempo na representação do Universo. Na realidade, a distinção entre espaço e lugar está na qualidade do segundo ser compreendido, construído, ou organizado por indivíduos, enquanto o primeiro não. Talvez seja por essa razão que chamamos “Espaço” ao Cosmos, porque não o compreendemos, nem o construímos ou organizámos. Da mesma forma, a unidade de medida do tempo como a conhecemos é suprimida por uma ambiguidade avassaladora.

Há, portanto, uma certa condição de dubiedade espacial e temporal que recai sobre uma concepção fatalista na representação do Cosmos, que Francisco Correia transmite através das telas que concebeu. Apesar da fatalidade sugerida, o artista não aceita essa condição e, através de elementos do imaginário medieval (o dragão) e futurista (o carro desportivo), oferece-nos a promessa da fantasia e do sonho – isto é, a possibilidade de renovação por meio do próprio. Da mesma forma que o elemento de futuro — o carro desportivo, característico da crise de meia idade — provoca um principio de contingência, também o elemento medieval (o dragão) se ocupa de cumprir essa premissa. No imaginário alquimista, o dragão constituí o símbolo da transformação. Propositadamente, ou não, o artista apresenta-nos estas referências de passado e futuro que preconizam o escopo do optimismo (mesmo que dissimulado pelo capitalismo, como é o caso do carro desportivo): o impacto e a capacidade da acção e da vontade humana.

Talvez estas sejam considerações algo desmedidas, ou talvez seja desconcerto meu que, desde 31 de Dezembro do ano passado, sobrevivo à base do novo álbum da Sallim, a dor o diagnóstico e o desejo, onde a mesma entoa: “o fatalismo é o mal de quem tem tudo a perder, o bem de quem se julga impotente, uh uh-uh-uh-uh”. Pois bem, em uníssono com a cantora, Francisco Correia remata a exposição na Galeria NAVE com uma peça escultórica. Nessa obra, um sistema planetário, interativo, é representado sem a presença de um astro central que dite as trajetórias das orbitas delineadas, ao invés, pelo artista. Ora, o astro somos nós: os planetas movem-se pelas órbitas concebidas por Francisco Correia apenas através da intervenção do espectador. Assim, o fim torna-se infinito.

Midlife Crisis, de Francisco Correia, está patente na Galeria NAVE até 5 de abril de 2024.

 

A autora não escreve ao abrigo do AO90.

[1] O título é derivado de Lowell, Robert. (1977). Since 1939.

BIOGRAFIA
Benedita Salema Roby (n. Lisboa) é licenciada em História da Arte (2019) e mestre em Estética e Estudos Artísticos (2022) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa com a dissertação "Graffiti: Considerações Acerca da Estética da Transgressão no Espaço Público da Cidade". Actualmente, encontra-se a realizar o doutoramento em Estudos Artísticos — Arte e Mediações na mesma instituição, onde desenvolve, com financiamento da FCT, uma investigação centrada no potencial de libertação societal e coletiva em torno de práticas (artísticas) transgressoras, como o graffiti e a pichagem política. Sobre este tema, também participa na realização de documentários e organiza oficinas de prática e pensamento orientadas para jovens. O seu projeto de tese, intitulado "A Desconstrução da (experiência da) Cidade e a Construção da Esfera Contra-Pública: Escrita Criativa Transgressiva, Estética e Política", é orientado por Cristina Pratas Cruzeiro e Joana Cunha Leal. Para além de publicações académicas, escreve sobre artistas emergentes e exposições de artes plásticas e performativas para revistas independentes, como a Umbigo e a Sem Título.
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