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João Onofre entre o grito do falcão e o canto da sereia
DATA
09 Nov 2023
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AUTOR
Frederico Vicente
João Onofre apresenta Untitled (in awe of) na galeria Cristina Guerra – Contemporary Art. Três novas peças compõem uma narrativa audiovisual não imediata – que este texto também não contribui para desvelar.

João Onofre apresenta Untitled (in awe of) na galeria Cristina Guerra – Contemporary Art. Três novas peças compõem uma narrativa audiovisual não imediata – que este texto também não contribui para desvelar. Na primeira sala, o grito do falcão-peregrino[1] ecoa pelo espaço, campo aberto, a cada 95 segundos. Dez ecrãs posicionados na horizontal (seis) e vertical (quatro) levam para além do limite a repetição, a re-dimensão, a reprodução. Por um lado, o binómio observador-observado é um jogo panorâmico, circular em torno da instalação. Por outro lado, afasta-se e aproxima-se, numa eventual referência à destreza do sistema ocular do predador. Por vezes espectadores, por vezes presa, somos acelerados a procurar uma posição cartesiana no espaço, com coordenadas XYZ, para conseguir absorver a totalidade da cena (da instalação). Torna-se uma tarefa ingrata sob o olhar vigilante do falcão que sobrevoa.

Por muito que queiramos escapar para outro espaço, descendo as escadas da galeria ao som desconstruído de Song for the Siren[2], música de Tim Buckley de 1969[3], não é possível, ou pelo menos não nos conseguimos esconder. A música pode ser o canto da sereia, um canto desregulado que atrai e orienta – “And you sang “Sail to me, sail to me;” – e sabemos o quanto a pop musical (a cultura) é figura assídua na obra de Onofre, como veículo de experimentação da memória e imaginário coletivo; mas não é suficiente para competir com o olhar atento do falcão – “til your singing eyes and fingers / drew me loving into your eyes”.

Nem mesmo os murmúrios soprados a trompete, na segunda sala, selados a lacre (com três cores: azul, verde e vermelho) e lançados ao mar, como se segredos ou cartas de amor profundo se tratassem, nos libertam do olhar do falcão. Untitled (It’s About That Time Corner Piece) (2022-2023) é uma composição de frascos transparentes (treze) que tira partido da esquina como o ângulo cego. Porém, logo o grito volta a ecoar e a atmosfera dentro do frasco escapa da nossa atenção.

Untitled (in awe of) é uma exposição para ornitólogos e outros entusiastas da visão, como o mais nobre de todos os sentidos, um ensaio sonoro sob o olhar atento da ave de rapina. Para ver, ser observado e escutar na galeria Cristina Guerra – Contemporary Art até dia 18 de novembro.

 

 

[1] O título da peça é Barbary Falcon (in awe of), 2023. O texto curatorial assinado por Andrew Renton, também em inglês, refere-se a esta espécie do mesmo modo, embora a versão portuguesa o traduza para Falcão-Peregrino invés de Falcão-Tagarote, uma espécie de tamanho menor. Desde já perdoem-me todos os ornitólogos se existir alguma errata. Mantemos o nome Falcão-Peregrino.

[2] Untitled (trio of voices for (João) tenor, falsetto and ASRM – Buckley and Beckett ‘s Song to the Siren, 2023.

[3] A música foi popularizada na versão de This Mortal Coil de 1983.

BIOGRAFIA
Arquiteto (FA-UL, 2014) e curador independente (pós-graduado na FCSH-UNL, 2021). Em 2018 funda o coletivo de curadoria Sul e Sueste, plataforma charneira entre arte e arquitetura; território e paisagem. Enquanto curador tem colaborado regularmente com algumas instituições, municípios e espaços independentes, de que se destaca "Espaço, Tempo, Matéria" (exposição coletiva no Convento Madre Deus da Verderena, Barreiro, 2020), "How to find the centre of a circle" com a artista Emma Hornsby (INSTITUTO, 2019) e "Fleeting Carpets and Other Symbiotic Objects" com o artista Tiago Rocha Costa (A.M.A.C., 2020). Foi recentemente co-curador, com a arquiteta Ana Paisano, da exposição "Cartografia do horizonte: do Território aos Lugares" para o Museu da Cidade, em Almada (2023). Escreve regularmente críticas e ensaios para revistas, edições, livros e exposições. É co-autor do livro "Gaio-Rosário: leitura do lugar" (CM Moita, 2020), "À soleira do infinito. Cacela velha: arquitectura, paisagem, significado" (edição de autor com o apoio da Direção Regional da Cultural do Algarve, 2023) e de "Geografias Urbanas" (em publicação). A atividade profissional orbita em torno das várias ramificações da arquitetura.
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