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Encontro Semeadores: um encontro-viagem pela Macaronésia
DATA
17 Jul 2025
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AUTOR
Frederico Vicente
Conectar os arquipélagos dos Açores, da Madeira, das Canárias e de Cabo Verde, destacando as suas singularidades e condição periférica, parecia ser um dos trabalhos de Hércules. No entanto, foi esse o combustível verde para o Encontro Semeadores, que aconteceu entre os dias 19 a 24 de maio no Funchal, num evento promovido pela Câmara Municipal do Funchal, com o apoio RPAC. Para conhecer o processo ou apenas sob o pretexto de também semear, a Umbigo voou até à Madeira.
Francisco Franco imprimiu no bronze o gesto de semear.
O Semeador[1] é uma figura de 2,45 metros de altura seminal no percurso do escultor. Há nos traços da figura um primeiro sopro dramático: lembra Rodin, ou os campos estivais de Van Gogh, e manifesta uma humanidade contida. Contida no gesto, o corpo avança com uma gravidade silenciosa: uma perna em passo firme, uma mão que segura a sacola das sementes adormecidas, a outra que as deita ao vento.
A escultura foi fundida em Paris e apresentada no Salão Nacional de 1924, viajando depois para a ilha da Madeira em 1936. Desde então, tem procurado o campo mais fértil: primeiro na Praça de Tenerife (cujo topónimo viria a ser um prenúncio), caminhou para o Parque de Santa Catarina, movendo-se depois para o edifício do Governo Regional, lugar de onde partimos para um percurso por toda a Macaronésia.
Conectar os arquipélagos dos Açores, da Madeira, das Canárias e de Cabo Verde, destacando as suas singularidades e condição periférica, parecia ser um dos trabalhos de Hércules. No entanto, esse foi o combustível verde para o Encontro Semeadores, que aconteceu entre os dias 19 a 24 de maio no Funchal, num evento promovido pela Câmara Municipal do Funchal, com o apoio RPAC. Para conhecer o processo ou apenas sob o pretexto de também semear, a Umbigo voou até à Madeira. São estes os nossos destaques de três longos dias de debates, oficinas, conhecimento do território, mas sobretudo de encontros e semelhanças interatlânticas.

DIA UM: A CIDADE
A manhã acordou cedo no Teatro Baltazar Dias, com uma sessão de debates focados no papel dos museus e instituições, com a participação de Ana Salgueiro (Funchal Modernista e Experimental), Ana Nolasco (autora do estudo Arquipélagos Criativos) João Paulo Constância (do Museu Carlos Machado, Açores), Nestor Morales (TEA Tenerife, Canárias) e Sofia Botelho (do Arquipélago, Centro de Artes Contemporâneas, Açores). Após almoço, o ponto de encontro foi O Semeador, de onde partimos para uma caminhada tropical pelo Funchal – tentando não perder de vista a estrelícia que Luís Filipe Fernandes acenava como zimbório sob o sol da tarde. Da vista do topo do Torreão da Câmara Municipal, ao bairro da zona velha, parámos no Largo do Corpo Santo. Duas iniciativas municipais, a Galeria de Arte Impulso e o Estúdio de Criação Artística, ladeiam a igreja e procuram contrariar a monocultura do turismo, ancorando projetos jovens nas dinâmicas do bairro histórico. Francisca Mata, artista em residência na Impulso por aqueles dias, falou-nos sobre a importância da plataforma como um espaço de experimentação para artistas em início de carreira no Funchal (num tempo em que o espaço e os espaços para criar escasseiam). De seguida, bebemos água da fonte, recomendação do mestre Martinho Correia – a melhor e mais pura água que vão beber, ao som das estórias dos pescadores, das armadilhas para peixes e dos meninos de mergulho, que apanhavam com os pés as moedas atiradas ao mar pelos turistas, para júbilo dos mesmos.
Pausa para um refresco (após o refrescar) e seguimos para a inauguração da exposição de Isabel Madureira Andrade na Capela Boa Viagem, projeto com direção artística de Hélder Folgado com um braço no Museu Henrique e Francisco Franco, onde haveríamos de terminar o dia. O entardecer foi ao som ritmado (lento) das “Canções” de Andrade com direito a um drink de fim de tarde com vinho da Madeira. Debateu-se o sentido da linha, a simplicidade e o rigor do traço, a matriz e a dificuldade dos métodos, a pesquisa e as tentativas. E, uma vez mais, o processo de uma estar em residência em função de um produto final, que é uma exposição, que é uma mostra pública, que é a expectativa e a pressão que nasce muitas vezes acelerada, e com o propósito de ser abreviada para um reels de segundos a postar numa qualquer rede social, onde faremos swipe.

DIA DOIS: A ILHA
Carolina Caldeira (Festival Fractal) inaugurou a sessão de debates no Teatro Baltazar Dias. A programadora contagiou-nos com o seu entusiasmo, contando-nos como faz acontecer um festival multidisciplinar entre a arquitetura e as artes visuais numa cidade ultraperiférica. Condição essa partilhada por Octávio Barreira e Ampi Aristu, o coletivo Lava Circular que torna a ilha d’ El Hierro no epicentro cultural (e sensorial) do arquipélago das Canárias. De outras periferias, as de Lisboa, João Rolaça trouxe-nos um projeto conhecido de todos, as Oficinas do Convento em Montemor-o-Novo, e o artista Paulo Brighenti a história das residências RAMA, localizadas nos arredores de Torres Vedras. À tarde, em excursão, subimos de socalco a socalco à serra, para conhecer a nova Galeria Lourdes, no sopé da Quinta de São João. Inaugurada em 2023, a galeria é um espaço polivalente intrincado entre a vinha, a igreja que ainda celebra as missas ao domingo, a comunidade de Câmara de Lobos e o celeiro que abriga residências artísticas. Lourdes (um nome que poderia ser só madeirense) é uma homenagem à mãe do colecionador, conta-nos Aurélio Tavares, e abriga uma coleção com mais de 250 peças (que começou a colecionar ainda jovem, sobre a influência do galerista e colecionador de arte Mário Teixeira da Silva, fundador da galeria Módulo - Centro Difusor de Arte). Pouco antes, durante o almoço servido à sombra do alpendre, Aurélio Tavares tinha-nos confidenciado, sorridente e conformado, que entre as pinturas que compunham as paredes do piso térreo (ali ao lado), ou seja entre Lourdes de Castro, Cruzeiro Seixas, Nadir Afonso ou Paula Rego, se exibia também um óleo falso de Amadeo de Souza Cardoso. Na pausa, entre o café e a sobremesa, não resistimos a espreitar o quadro…
Seguimos depois entre túneis até à casa das Mu.das - Museu de Arte Contemporânea da Madeira, projeto do arquiteto Paulo David, onde nos esperava uma visita guiada, montanha abaixo, e um raminho de alecrim à saída. Recordámos a simplicidade de Lourdes Castro no jardim de sua casa, e voltámos com essa imagem ao Funchal, onde transmalhámos, com a Rita Silva (Anda & Fala), a Catarina Claro (projeto Trégua) e as meninas e os meninos da Dançando com a Diferença, deixando de fora o preconceito e a vergonha.

DIA TRÊS: OS ARQUIPÉLAGOS
No último dia, a manhã começou diferente. O pequeno-almoço serviu-se na Porta 33, lugar de peregrinação obrigatória quando no Funchal. A Porta 33 é um daqueles lugares portal, onde a arte e a vida compõem a estrutura da mesma semente, da mesma planta, do mesmo herbário, que tem germinado no centro do Funchal e representa a arte contemporânea portuguesa nas últimas três décadas. É um espaço ativo, é um jardim de inverno, é um arquivo e é agora também uma escola moderna em Porto Santo.
Seguimos depois para o Teatro Baltazar Dias, onde uma vez mais Martinho Mendes mediou uma conversa entre arquipélagos, apresentando práticas culturais insulares: Artur Marçal (Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design, Cabo Verde), Adonay Bermúdez (Bienal de Lanzarote, Canárias) e Jesse James (Festival Walk&Talk, Açores, agora bienal). O dia e o programa fechou com a apresentação da performance Paisagem em Linha de Gustavo Ciríaco, um gesto entre o desenho bidimensional da topografia e a tridimensionalidade das montanhas e dos vales, lembrando que a paisagem é uma construção humana.
Sementada a viagem, resta-nos esperar pelas colheitas, cantando a canção do semeador de Torga: “(…) Mas todo o semeador / Semeia contra o presente/ Semeia como vidente / A seara do futuro, / Sem saber se o chão é duro / E lhe recebe a semente”.
[1] Assim como em várias outras obras iniciais, anteriores à sua produção mais significativa durante o período do Estado Novo. Algumas dessas peças estão expostas no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado.
[2]Um projeto da Câmara Municipal do Funchal com apoio Rede Portuguesa de Arte Contemporânea, direção artística de Hélder Folgado e Martinho Mendes, coordenação de Sara Canavezes e mediação cultural de Filipe Fernandes.
BIOGRAFIA
Arquiteto (FA-UL, 2014) e curador independente (pós-graduado na FCSH-UNL, 2021). Em 2018 funda o coletivo de curadoria Sul e Sueste, plataforma charneira entre arte e arquitetura; território e paisagem. Enquanto curador tem colaborado regularmente com algumas instituições, municípios e espaços independentes, de que se destaca "Espaço, Tempo, Matéria" (exposição coletiva no Convento Madre Deus da Verderena, Barreiro, 2020), "How to find the centre of a circle" com a artista Emma Hornsby (INSTITUTO, 2019) e "Fleeting Carpets and Other Symbiotic Objects" com o artista Tiago Rocha Costa (A.M.A.C., 2020). Foi recentemente co-curador, com a arquiteta Ana Paisano, da exposição "Cartografia do horizonte: do Território aos Lugares" para o Museu da Cidade, em Almada (2023). Escreve regularmente críticas e ensaios para revistas, edições, livros e exposições. É co-autor do livro "Gaio-Rosário: leitura do lugar" (CM Moita, 2020), "À soleira do infinito. Cacela velha: arquitectura, paisagem, significado" (edição de autor com o apoio da Direção Regional da Cultural do Algarve, 2023) e de "Geografias Urbanas" (em publicação). A atividade profissional orbita em torno das várias ramificações da arquitetura.
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