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LUNOTICS: a instalação foto-gráfica e político-lunática de João Henriques na Casa Azul
DATA
13 Dez 2023
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AUTOR
Inês Joaquim
Ao refletir sobre um projeto de arte contemporânea, diversos desafios surgem, tais como a proximidade temporal, a difícil categorização e a legitimação como arte pela crítica e o público leigo. Para melhor compreender o alcance conceptual de Lunotics, interessa traçar a sua filiação aos movimentos das vanguardas.

Ao apreciar e refletir sobre um projeto de arte contemporânea, diversos desafios surgem, tais como a proximidade temporal, que prejudica o necessário distanciamento crítico, a difícil categorização (ou o questionamento sobre a utilidade desta) e a legitimação como arte não só pela crítica, mas também no quadro da receção pelo público leigo. Face a estas dificuldades e para melhor compreender o alcance conceptual de Lunotics, interessa, de certo modo, traçar a sua filiação nos movimentos cíclicos das vanguardas históricas, neo-vanguardas e pós-modernismo, em que se verifica uma progressiva reconexão e/ou tensão entre arte e vida, combatendo a autonomia da arte e, bem assim, as instituições, e promovendo uma des-sacralização ao desconstruírem convenções e ideias feitas sobre a arte, fazendo-a “descer à terra”, na tentativa de dissipar o seu caráter aurático (conceito desenvolvido por Walter Benjamin n’A arte na era da reprodutibilidade técnica). Neste contexto e no caso particular de Lunotics, três fatores históricos se intercetam e são de crucial importância: a invenção da fotografia como meio de reprodução revolucionário e o seu impacto no caráter global da arte, além da sua própria validação como obra de arte; a chegada do Homem à Lua e o registo fotográfico dessas viagens; e a politização da arte em certas correntes, nomeadamente no âmbito da arte conceptual. O primeiro fenómeno ofereceu novas potencialidades técnicas no registo de imagens que vão além do que é apreensível pela ótica natural e a sua posterior democratização, atualmente a par da proporcionada pela revolução digital, facilitou o acesso à informação e à própria arte, influenciando assim uma evolução ou alteração da perceção sensorial dos artistas e dos recetores.

A transição de um valor de culto/ritual da arte para um valor de exposição influenciou o terceiro fator: depois da concentração nos meios próprios e nas puras formas da arte, em parte como resposta ao surgimento de meios de reprodutibilidade técnica como a fotografia e o cinema, e desenvolvidos em correntes como o Modernismo, dá-se uma viragem para a politização da arte, devolvendo-lhe uma função social. Um dos exemplos fulcrais desta rutura foi o grupo Fluxus, cujas premissas e explorações artísticas parecem ter algo em comum com o trabalho de João Henriques: a interdisciplinaridade e caráter performático de novas formas artísticas como o happening ou o letrismo e sobretudo a sua desconstrução da arte com o intuito de fundi-la nos quadros das revoluções cultural, social e política, unidas nas mesmas frentes de ação. Este caminho encetado em manifestos dos anos 60 não foi estéril; pelo contrário, ganhou novas expressões no fim do século XX e início do XXI. A «guerra» entre a abstração e a representação com outros meios originou, segundo Hal Foster, um retorno do real, que acontece em três vias: o realismo traumático, o ilusionismo (ou super-realismo) e a arte da apropriação. A última tem aqui especial relevância, por ser a que mais se associa à proposta de Lunotics, e a sua relação com a fotografia e teorias da representação da imagem pode ajudar a “decifrar” a instalação a par do segundo fator histórico referido acima.

Na segunda metade do século passado, num ambiente pós-guerra, em grande parte da crítica de arte relacionada com fotografia, a imagem é vista, de forma redutora e dicotómica, como referencial ou simulacro, o que influencia leituras de movimentos como a Pop Art, esquecendo a sua vertente crítica ao consumismo e o seu engajamento político, ainda que não isentos de contradições. De facto, além do simulacro, do aspeto superficial da repetição e da aproximação à sociedade do espetáculo e à cultura de massas, a Pop Art nascida nos EUA questiona essa nova realidade, em vez de se limitar a mostrá-la com indiferença ou fascínio, e algumas falhas de registo ou na cor podem simbolizar o desencontro com o real, destacando-se a contradição entre acidente/acaso e o automatismo da tecnologia. Este contraste intervém sobre o inconsciente ótico, termo criado por Walter Benjamin para traduzir o efeito subliminar das novas tecnologias da imagem. Aqui pode-se já estabelecer um paralelismo com a instalação foto-gráfica – hífen propositado pela conjugação entre o grafismo da linguagem e a imagem fotográfica – de João Henriques em dois caminhos: uma aproximação à arte pop com a inspiração do cinema de ficção científica (num vídeo, numa tela com um grafismo textual que lembra o Star Wars e na própria cenografia do espaço expositivo) e o ambiente ironicamente festivo da sala (com bolas de espelho e iluminação de discoteca), e a exploração do erro nas 19 imagens apropriadas do arquivo digital da NASA, criadas para documentar as jornadas da missão Apollo à Lua (1961-1972).

Possivelmente, haverá nesta proposta uma certa reformulação da estética do erro associado a falhas tecnológicas (Glitch Art), mas a filiação mais evidente da estrutura conceptual de Lunotics é a da arte da apropriação. Num tempo em que a globalização e os novos meios de circulação digital e mediática geram um excesso de informação e levantam problemas sobre a autoria e a veracidade das imagens e da linguagem, sob uma ameaça crescente devido a fenómenos como o desenvolvimento da inteligência artificial, o artista recorre à arte da apropriação como forma de subversão da memória e reflexão sobre a sua importância na construção do mundo, aproveitando um certo simbolismo do arquivo do erro para desmistificar o discurso de poder arquivístico, científico e político de uma instituição como a NASA. Este movimento, segundo Hal Foster, “ou leva a ilusão fotográfica para um ponto de implosão (…) ou provoca uma reviravolta nessa ilusão para questionar a verdade documental da fotografia, o valor referencial da representação, como nos primeiros textos-fotos de Barbara Kruger. Daí a crítica excessiva da representação nessa arte pós-moderna: uma crítica de categorias artísticas e de géneros documentais, de mitos dos media[1].

Mais ou menos coincidentes com os três fatores históricos abordados, o curador de Lunotics, Jorge Reis, aponta três sentidos para a leitura desta instalação: o da descontextualização e atribuição de um novo significado conceptual às imagens apropriadas, já aqui explorado, que lhes confere quase uma abstração e a perda de um referencial, revelando a sua potencial plasticidade com diversas escalas, técnicas e formas de expô-las; a exploração conceptual da linguagem ao aproveitar o duplo sentido da palavra “lunático” – a génese latina do conceito, associado a transtornos neurológicos como a epilepsia, e o sentido mais comum atualmente que se refere a alguém alienado, fora da realidade e com a “cabeça na lua” -, para aplicá-lo à profusão de frases (também apropriadas) proferidas por personalidades conhecidas da política e economia portuguesas do pós-25 de Abril, lunáticas tanto no que afirmam como no modo difuso da sua ocupação gráfica do espaço e da memória coletiva; finalmente, o terceiro sentido é o ótico, aqui ligado à imagem e “à representação como construção de um discurso de poder[2]. Ainda no que concerne a apropriação conceptual e da linguagem, é de destacar a contradição entre o retirar o significado e o referente das imagens espaciais, mas usar metáforas espaciais na montagem do espaço expositivo, por exemplo na disposição cenográfica das molduras que deixam de ser usadas apenas como suportes, no vídeo da entrada e na bandeira branca, no centro da galeria, com a frase de Ricardo Salgado sobre uma suposta falta de memória. Estas contradições refletem a ambiguidade pós-representacional da arte pós-modernista e pós-estruturalista e, neste caso específico, denunciam a incoerência e a objetificação neoliberal do ser humano implícitas nas frases cujos autores são reconhecíveis e encerram assim um poder representacional da linguagem, em contraposição com a perda de capacidade de representação das imagens.

O curador sintetiza e clarifica este exercício, explicando que “João Henriques pretende criar um jogo relacional com o visitante a partir de toda a envolvente onde a palavra e a imagem são a parte de um todo universal simulado onde a ironia do acaso gravitacional tem a força de um buraco negro”, em linha com uma das características centrais do percurso do artista, que pretende explorar “a imagem no intervalo entre a superfície e a profundidade, e enquanto mediação do real e da imaginação, para a projeção e construção de significado no mundo” (como se pode ler na sua biografia). Finalmente, o artista assume-se aqui como um flaneur espacial que põe em cheque o seu próprio reconhecimento autoral em favor da criação de novos significados e o curador reforça o incentivo à participação ativa dos visitantes ao propor-lhes um exercício de reflexão sobre a “lunoticidade” inerente aos discursos espalhados pela Casa Azul, mas também sobre a seriedade de serem ditos por quem nos tem governado. No limite, todos podemos questionar: quem conquistou e quem foi conquistado, e onde estamos no estado atual da arte? Citando Andrei Tarkovsy: “Onde estou quando não estou na realidade nem na minha imaginação?”.

Lunotics, de João Henriques, está patente na Casa Azul, da EMERGE, até 31 de dezembro de 2023.

 

[1] Foster, Hal. (1996). The Return of the Real, Londres: MIT Press, cap. 5, p. 174.
[2] Segundo texto curatorial.

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