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Se eu acreditasse em astrologia: Não se convida 13 para jantar e outras superstições na Dialogue Gallery
DATA
14 Dez 2023
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AUTOR
Laila Algaves Nuñez
Não se convida 13 para jantar. Na Dialogue Gallery, porém, treze artistas têm lugar à mesa. Seja pela metodologia curatorial, seja pelo teor diegético das obras, a exposição coletiva firma um compromisso com o incerto, com a coragem de quem atravessa a porta com o pé esquerdo.

Não se convida 13 para jantar. Na Dialogue Gallery, porém, treze artistas têm lugar à mesa. Seja pela metodologia curatorial – cujo olhar se deixa guiar por procedimentos de leitura simbólica tão intuitivos quanto analíticos –, seja pelo teor diegético[1] das obras – que oferecem possibilidades interpretativas sobre os vários mistérios da vida (e da morte), da criação à destruição do mundo, do destino ao acaso –, a exposição coletiva firma um compromisso com o incerto, com a coragem de quem atravessa a porta com o pé esquerdo, passa por debaixo da escada, parte um espelho e, no final, nem bate três vezes sobre uma superfície de madeira.

As origens do desapreço pelo treze são, em parte, senso comum. É este o número que quebra a perfeição circular do calendário gregoriano, a paisagem celestial das constelações zodiacais, a simetria do banquete divino no Olimpo ou na Santa Ceia. A matemática e a música também preferem o número antecessor: no sistema musical ocidental, também conhecido como sistema temperado, as notas musicais são doze, assim como os graus cromáticos. Na Bíblia, doze tribos compõem o povo eleito, representados pelas doze portas monumentais de Jerusalém, guardadas por doze anjos; durante a noite cantam-se doze salmos; o Espírito Santo inspira doze virtudes – amor, alegria, paz, paciência, clemência, bondade, calma, brandura, fidelidade, modéstia, castidade e abstinência. O 13.º elemento só pode ser, então, o indesejado, o inóspito, aquele que trai a ordem sublime com uma dose de irreverência e perigo. O que significa, hoje, adotar esta posição ingrata?

É verdade que o texto da folha de sala de Não se convida 13 para jantar coloca a astrologia em pé de igualdade com outras crendices e lendas – e, acreditem, a discussão sobre as legitimidades e as linhas divisórias que traçamos entre a “Ciência” e o “primitivismo”, o “animismo”, a “pseudociência” etc. poderia ser muito extensa[2] –, mas, absolvendo a autoria desse breve deslize, justificado pelos recortes temáticos e espaciais a que um ensaio deste cunho deve ou costuma submeter-se, permanece o elogio necessário aos “meios não convencionais de inteligir a realidade”[3]. Habitar o treze e vibrar a sua angústia, a sua magia, é ficar com o problema do futuro e do inesperado; é avaliar o lugar onde e a maneira como depositamos as nossas esperanças e os nossos pessimismos num tempo, supostamente, retilíneo e unidirecional. O espaço da superstição é, também, aquele que coloca “as vidas e os futuros domésticos humanos numa relação humilhante com a natureza e a chance […], um lembrete da [nossa] vulnerabilidade face ao futuro que se aproxima” e “que implica tanto os humanos como as entidades não-humanas enquanto partes ativas [nesta] trama[4]. Em suma, abrir espaço e estender a cadeira ao 13.º convidado é escancarar as relações tímidas que nutrimos com a imprevisibilidade – e, mesmo, com outras técnicas possíveis de predição, num mundo saturado de grids, algoritmos e inteligências artificias, mas que abandona os seus profetas, xamãs, cartomantes e contadores de histórias.

Como amuletos, cada obra exposta parece armazenar uma série de interpretações que se vão abrindo e multiplicando, individual e coletivamente. Juntas, as peças travam um diálogo como traços numa espécie de mapa astrológico – sendo que um mapa natal foi, de facto, construído e lido na galeria, no momento da inauguração: Sara Graça em trígono com Vasco Futscher e Luke Silva, Alice dos Reis em oposição a Horácio Frutuoso, Tom Solty em quadratura com Maja Escher. As possibilidades de leituras parecem-me quase infinitas, e pergunto-me quantas associações inusitadas e potentes poderíamos descobrir se assim observássemos e pensássemos qualquer exposição (e se tivéssemos, é claro, algum conhecimento sério acerca da matemática e da mitologia astrológicas).

Apetecia-me, até, examinar o trabalho de cada artista como símbolo de um signo. A Bola de vidro (2023), de Pedro Huet, mostrar-nos-ia toda a força pioneira e o encarnado fervoroso e autocentrado de Carneiro; The Lord’s Favorite One (2019), de Horácio Frutuoso, confrontar-nos-ia com as ilusões humanas – e, talvez, taurinas – da lealdade e da devoção do Outro. Information point where you should relax in the name of sweetness (2023) e Sara Ain’t Guilty (2022), de Lulu, compreenderiam uma carga de desobediência e despojamento que apenas a energia geminiana, na sua criatividade excessiva e segura, poderia transparecer. RVSP (2023), de Manuel Tainha, traria consigo a marca das águas de Caranguejo – e, como as escorpianas Ano Duzentos e Ano Dez (2021), de Alice dos Reis, outra peça que convida ao mergulho no íntimo, versaria sobre a ordem cíclica do nascimento e do desaparecimento, do infinito ao finito e ao infinito outra vez. Calabi-yau (2015), de Vasco Futscher, guiar-nos-ia, com a exuberância e a originalidade do Leão, pela abundância enigmática das várias dimensões e facetas do espaço-tempo; e, como quem erra o signo na primeira adivinhação, ficaríamos decepcionados ao constatar que Metamorfoses (2023), de Inês Raposo, é representante de Virgem, e não do Escorpião, símbolo usual da transformação e cura. Ah, mas era óbvio! Desde o início! Quem mais, se não a arte virginiana, teria a capacidade de estender a si mesma num prato para examinar-se em detalhe, mastigar as suas texturas, cortar-se, engolir-se, e, no final, digerir-se mal? Quanto a Captação da água (2020-23), não haveria dúvidas: a obra trata-se de um perfeito exemplar de Balança – signo de ar, é verdade; mas também recipiente, negociante dos contrários, agente conciliador que une a direita e a esquerda, acima e abaixo. Blowing Bubbles on a Porch (2023), de Tom Solty, tornar-se-ia retrato da leveza sagitariana, sempre espontânea, volátil e à beira da explosão; In Questa Finestra (2021), de Sara Graça, representaria o empenho e a elegância capricorniana pelos seus desenhos pacientes e precisos em caneta esferográfica. Espanta Espíritos (2022), de Pedro Barateiro, arrebatar-nos-ia com toda a suspeição típica de um Aquário questionador, que, no fim das contas, está somente em busca de pertencer a algo maior. Estaria claro, também, que Chocke (2023), de Luke Silva, é alegórico da inventividade e da dramaticidade pisciana, que deixa escorrer os seus oceanos emocionais sobre a tela, manipulando a aguarela como quem navega outras águas também com mestria. Por fim, o 13.º signo, Ofiúco, seria aquele que, não participando do zodíaco tradicional – deslocado, até, para o segundo piso da Dialogue Gallery –, desconcerta a todos nós com o seu segredo visionário: Each Moment Presents What Happens (2022), da veterana e prestigiada Johanna Billing.

Isto tudo, é claro, se eu “acreditasse” em astrologia.

Não se convida 13 para jantar tem curadoria de Beatriz Neves Fernandes, Joana Oliveira e Sonia Taborda, e está patente na Dialogue Gallery, em Marvila, Lisboa, até 30 de dezembro de 2023. Para visitar com 12 passas de uva à mão.

 

[1] Diegese é um conceito da narratologia, estudos literários, dramatúrgicos e cinematográficos que diz respeito à realidade dos elementos dentro de uma narrativa. Por exemplo, uma música diegética é aquela que está inserida e incorporada em determinado universo ficcional, com implicação direta para as personagens daquela cena ou dramaturgia; em contrapartida, sons ou bandas sonoras extra-diegéticas são experimentadas apenas pelas pessoas espectadoras, não fazendo parte do mundo e da história que se desenvolve na obra.
[2] Poderia mencionar, aqui, o trabalho de diversos astrólogos tradicionais que são, também, sociólogos, antropólogos ou estudiosos das ciências, ou, ainda, para falar à audiência académica europeia, qualquer um dos brilhantes tratados de Silvia Federici ou Isabelle Stengers, que pensam, com rigor e historicidade, as periferias do gesto científico e formas de encantamento do mundo.
[3] Folha de sala da exposição.
[4] Reis, Alice dos. (2019). “Paul the Octopus’ Death and Other Thoughts on Animal Oracles.” in Schemas of. Uncertanity, ed. Danae Io, Callum Copley. Amsterdam: PUB. Tradução livre. Disponível em < https://schemasofuncertainty.com/paul-the-octopus-death>.

BIOGRAFIA
Laila Algaves Nuñez é investigadora independente, escritora e gestora de projetos em comunicação cultural, interessada particularmente pelos estudos de futuro desenvolvidos na filosofia e nas artes, bem como pelas contribuições transfeministas para o pensamento social e ecológico. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema (PUC-Rio), mestre em Estética e Estudos Artísticos (NOVA FCSH) e doutoranda em Estudos Artísticos - Arte e Mediação (NOVA FCSH) com bolsa FCT, pesquisa o potencial da escrita e da ficção como ferramentas para a salvaguarda dos Direitos da Natureza, propondo e participando em projetos de investigação-ação que atravessam as intersecções entre palavra, performance, imaginação e ativismo ecológico.
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