No passado dia 3 de julho, o auditório da Casa do Comum encheu-se para assistir à projeção do filme Revolución Puta de María Galindo (La Paz – Bolivia, 1964). Em viagem pela Europa por ocasião da Bienal de Veneza e do Festival de Avignon, a artista e ativista feminista decolonial foi convidada para vir a Lisboa por iniciativa de alguns coletivos como Sirigaita, Biblioteka, Left Hand Rotation e Manas, entre outros. No final da projeção, Galindo afirma, no seu jeito provocador: “Este filme não é um objeto artístico”. Feito com poucos recursos, ovni para um certo olhar estético ocidental – situando-se algures entre o documentário, o filme experimental e o manifesto político em vídeo – Revolución Puta interpela não só pela sua forma, mas também pelas problemáticas para que chama a atenção.
Abre com uma imagem de uma dezena de mulheres mascaradas e vestidas de vermelho caminhando pelas ruas de La Paz e da cidade vizinha de El Alto, interpelando pessoas ao acaso nas ruas e nos mercados. Parece ser de manhã, a hora em que as cidades acordam e a roda laboral se põe a funcionar. A abordagem, brutal, é sempre a mesma: “Eu sou puta, prostituta, trabalhadora sexual. Qual é a diferença entre o seu trabalho e o meu?”. Não são atrizes. Vamos assistindo às repsostas de homens e mulheres, jovens e idosos; muitos e muitas afirmam “Não sei”, ou “Nenhuma, fazes o que podes para colocar comida na mesa, para ti e os teus filhos”.
Há pelo menos 50 anos que a questão da prostituição ou trabalho sexual divide as feministas entre abolicionistas da “prostituição” e as que defendem uma descriminalização e/ou regulamentação do “trabalho sexual”. A própria terminologia utilizada por cada um dos campos é reveladora da cisão de posições. As primeiras defendem que a “prostituição” é sinónimo de opressão das mulheres pelos homens e que nenhuma mulher pode realmente querer “prostituir-se”; as segundas afirmam que a mulher é livre de dispor do seu corpo como lhe aprouver, sem que sobre ela pesem ditames morais ou religiosos, e que pode trabalhar assim como trabalhar de outra forma.
Estas categorias académicas, cunhadas por teóricas feministas ocidentais ao longo das últimas décadas, revelam-se inadequadas para exprimir a realidade empírica de muitas mulheres. No seu ensaio Cara de Puta[1], Galindo afirma que um dos problemas é que “o debate chegou de avião com argumentos já armados e autoras que era preciso canonizar de antemão”. Para contrariar isto, “é absolutamente necessário colocar-se fora deste binarismo simplificador (…)” e é por isso que no documentário procura jogar “com a incorreção de usar as palavras ‘puta’, ‘trabalho sexual’ e ‘prostituição’ indistintamente”.
Como qualquer esforço de pensamento decolonial, o que este documentário convida a fazer é esquecer as categorias de pensamento prévias para, com a mente o mais tábua rasa possível, olhar para os corpos e escutar a fala do outro hemisfério. Defensora de uma abordagem callejera do feminismo, de um pensamento que nasce e se desenvolve nas ruas e não na academia ou nos livros, Galindo convida-nos a pensar com perguntas e respostas da rua, num “feminismo intuitivo, que não leu Beauvoir nem Butler, mas que é capaz de ler a realidade que habita, um feminismo que leu o corpo das mães, as prisões de mulheres, as casas de banho dos terminais de autocarros sem rumo, e todas as fronteiras”[2].
O documentário segue depois para a segunda parte, em que, no terraço de uma casa, várias mulheres mascaradas partilham aquela que é a sua ciência, o seu conhecimento sobre a sexualidade e a psicologia masculina, adquirido ao longo de anos de trabalho. São abordadas na primeira pessoa temáticas como a importância da independência do trabalho face a qualquer tipo de proxeneta ou a manutenção de uma imparcialidade emocional face ao cliente – “nunca se apaixonar pelo cliente”. Um homem disfarçado aparece, as mulheres pisam e saltam em cima do seu corpo. Riem.
Numa terceira parte, assistimos a um testamento da única mulher no filme que aparece de cara destapada. A utilização das máscaras serve para proteger a identidade destas mulheres, e ao mesmo tempo funciona como um statement de coletividade da luta. Uma mulher, porém, vem falar em nome próprio, uma mulher na casa dos sessenta, Cristina, nascida no Brasil mas emigrada na América do Sul e indocumentada há mais de 30 anos, partilha com uma roda de mulheres a sua história enquanto trabalhadora sexual, dá detalhes, e anuncia a sua reforma. Entra-se, mas também se sai – a que custo?
Por fim, numa última parte, asistimos a uma confrontação simbólica entre estas mulheres e o Estado boliviano: vêm expor em praça pública, perante as centenas de pessoas que se reunem diariamente na Plaza San Francisco no coração de La Paz, a hipocrisia da sua relação com esta questão – abordam questões de saúde, entre outras. O filme fecha com a queima simbólica, desta feita não das bruxas por parte da Inquisão espanhola, mas de um placard gigante representando um edifício estatal por parte “das netas das bruxas que eles não puderam queimar”.
Toda a estética do filme é provocadora, incendiária: as letras vermelho néon que anunciam as várias partes do filme, os disfarces das mulheres. No final da projeção, Galindo partilha com o público que este objeto é o resultado de 20 anos de trabalho seu e do coletivo feminista que co-fundou na Bolívia, Mujeres Creando. De facto, este modus operandi de ocupação do espaço público e esta estética podem ser encontrados em obras anteriores. Veja-se, a título de exemplo, a curta-metragem Virgen Cerro[3], que questiona o passado colonial boliviano a partir de uma recriação callejera do quadro anónimo do século XVIII com o mesmo nome.
Apresentado este ano na Bienal de Veneza – apesar de, nas palavras de Galindo, este não ser um filme de festivais, porque antes de chegar até aqui percorreu aldeias, vilas e cidades na Bolívia, visto por mães, filhas e avós –, integra o Desobedience Archive, uma base de dados concebida inicialmente por Marco Scotini em 2005 que recolhe diversos materiais audiovisuais que, de uma forma ou de outra, problematizam a relação entre práticas artísticas e ações políticas.
Porém, o protagonismo de Galindo nesta edição do Festival não ficou apenas pela apresentação do seu filme. Convidada pela organização na qualidade de crítica de arte decolonial, acompanhou esta edição que teve como tema Foreigners everywhere, numa clara tentativa de se inscrever no movimento de decolonização das instituiçoes artísticas ocidentais. María Galindo focou-se, enquanto crítica, no pavilhão espanhol e na escolha, inédita, de uma artista de origem peruana, Sandra Gamarra, para representar o país com uma exposição intitulada Pinacoteca Migrante. A exposição faz-se acompanhar de excertos de vários autores, nomeadamente Françoise Vergès, crítica de arte e socióloga francesa cujo livro Decolonizar o museu foi recentemente publicado em Portugal. Na longa conversa entre ambas[4], partilhada em forma de vídeo nas redes sociais, Galindo questiona constantemente Gamarra se existe realmente uma vontade decolonizadora por parte do Estado espanhol no seu discurso político e cultural, ou se esta escolha acaba por ser mais uma maquilhagem no sentido de “mudar alguma coisa para que fique tudo na mesma”. Uma reflexão importante que se estende a várias instituições artísticas europeias num momento histórico em que o discurso decolonial se encontra na fronteira entre constituir-se como uma força crítica real ou ser absorvido pelo status quo.
[1] Galindo, Maria. (2020). “Cara de Puta”. In Revista de la Universidad de Mexico. Disponível em:
[2] Galindo, Maria. La jaula invisible. Texto escrito para uma performance no Parlamento dos corpos, Bergen, 2019, e recriada em 2020 no Museu Nacional Rainha Sofia em Madrid.
[3] Disponível em
[4] Disponível em