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Mistifório – Fidelidade Arte
DATA
12 Jan 2023
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AUTOR
Maria Eduarda Wendhausen
Tanto O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu de Sacks, quanto A Canção do Jardineiro Louco de Carroll se conjugam num denominador comum. Se entrelaçam na sua aparente desconexão, na mesma medida em que a exposição Mistifório com curadoria de Natxo Checa produz uma sintaxe extraordinária.

Tanto O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu de Sacks, quanto A Canção do Jardineiro Louco de Carroll se conjugam num denominador comum. Se entrelaçam na sua aparente desconexão, na mesma medida em que a exposição Mistifório com curadoria de Natxo Checa produz uma sintaxe extraordinária.

Patente até dia 20 deste mês, Mistifório é o primeiro momento do ciclo expositivo Território em parceria com a Culturgest na Fidelidade Arte em Lisboa. O termo, caído em desuso pelos nossos contemporâneos, faz menção às zonas cinzas e espaços liminais que se dirigem a qualquer tipo de mistura heterogénea, com procedências distintas que se conjugam por alguma razão.

Esta razão, que se tornou estritamente estruturalista de uns anos para cá, a partir de uma tendência natural humana em organizar as coisas seguindo uma determinada lógica, sobrepõe a linha narrativa em detrimento do significante dos seus atores. Como se a razão geral de quem a cunhou fosse mais importante que as razões particulares de quem o fez (Nota mental: uma justificação para os curadores estrela após 90s? Fica a reflexão).

Caso é que Mistifório propõe a liberdade ao visitante de observar os muitos desenhos, pinturas, esculturas – em síntese objetos – expostos, que aparentemente não revelam um sentido narrativo óbvio entre si, para que a própria sintaxe do espetador seja conjeturada de maneira independente.

O único guia que carregamos connosco quando adentramos no espaço das galerias é a folha de sala, numa abordagem intimista que extingue os impositivos textos de parede e/ou tabelas. Apesar da aparente perdição (no maior sentido condenatório) no qual o visitante pode se sentir imerso, a exposição evoca uma sensação emancipatória surpreendente.

Uma vez dentro dos cubos na cor invulgar de verde musgo, somos levados na primeira sala a uma apreciação intimista de objetos colocados em posições díspares na linha dos olhos do visitante. Todos de “proporções domésticas”, lê-se de pequenas dimensões, exibem-se em linha contemporânea, porém desalinhados como em paredes de salons pré-século XX. Assim se expõem uma abundância de obras de artistas portugueses consagrados, com algumas obras já conhecidas pelo público, e outras inéditas pertencentes a coleções particulares nunca mostradas em larga escala. Jorge Queiroz, Maria Helena Vieira da Silva, Vespeira, Mattia Denisse, Noronha da Costa e Paulo de Cantos partilham o espaço-tempo desta sala. Destaco Panta Rhei, a escultura com contornos de Ouroboros onde a água é o seu fim ao mesmo tempo, em que a sua ressurreição.

Apesar da aparente incompatibilidade entre os elementos, símbolos visuais desvelam-se em todas as salas; como os círculos, ou meio círculos, ou intuitos de ciclicidade pincelados subtilmente no trajeto da exposição.

Na segunda sala, somos encarados pelo O Modelo Humano (1936) também de Paulo de Cantos, uma das surpresas positivas da exposição. Que segundo a mediadora de Mistifório, Ana Flor Galvão, atuou tanto como designer quanto como professor de anatomia, uma mistura de profissões de foros distintos que resultou numa apreciação única e particular da vida, partilhada por ele nas suas obras ali expostas.

Indicados a prosseguir o caminho por uma escultura de Lagoa Henriques, caímos (literalmente) num plano onde uma projeção de João Maria Gusmão + Pedro Paiva sobrepõe uma parede de significantes. Trata-se de uma estante de grandes dimensões lotada de objetos que variam desde ossos de hipopótamo até um crânio humano, todos pertencentes à coleção particular do curador. Um verdadeiro gabinete de curiosidades é transportado para um sítio vulgarmente projetado para ser ocupado pelo novo. Este movimento confere um cariz de intimidade à visita, no qual são adicionadas ainda mais possibilidades quando tocados pelo feixe de luz da projeção da dupla de artistas.

Na terceira e última sala, mais polida e menos inebriante, apresentam-se numa configuração mais preenchida pelo vazio, duas obras inéditas ao público. Um bordado de Sarah Afonso e um Almada Negreiros. Salvos pelo melhor dos acasos e hoje expostos aos nossos olhos pela primeira vez.

A exposição termina com a pintura Camuflagem (1985-1986) de Maria José Aguiar escolhida pelo curador a partir da coleção da Caixa Geral de Depósitos. Curiosamente, uma citação direta a Painting, Smoking, Eating (1972) de Philip Guston. Pergunto: Que jeito melhor há de terminar uma exposição sobre a justaposição do que com uma obra como a Camuflagem?

O trunfo de Mistifório assenta na mesma qualidade que a montagem soviética deteve quando deu à luz o poder da sequência das imagens, ao enxergar a potência intrínseca de produzir significados. A diferença entre um filme, ou sequência de imagens em movimento, e uma exposição como estas é o espetador ser quem detém o poder de produzir os próprios significados. Na qualidade mais íntima de observarmos quando pequenos a prateleira de relicários na casa dos nossos avós.

Caso não consiga ver em Lisboa, Mistifório estará patente também no Porto em fevereiro. Vale a visita.

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