Morte em Veneza, um romance de Thomas Mann, foi adaptado ao cinema pelo realizador Luchino Visconti em 1971. Uma das obras mais inebriantes de que há memória, graças à visão e mestria do cineasta que parece ter sido tocado por algo divino, atingindo o inatingível.
Luchino Visconti teve um papel determinante na criação do movimento neorrealista italiano. Obsessão (1943), A Terra Treme (1948), Rocco e os Seus Irmãos (1960) e O Leopardo (1963) são alguns dos exemplos da sua extraordinária filmografia.
Início do Século XX, Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde), músico e compositor, viaja até Veneza que elegeu como refúgio para recuperar de um esgotamento. Tenta, desta forma, salvar alguma da sua sanidade e esquecer memórias que o atormentam, em particular as suas últimas atuações em público que se revelaram um fracasso.
Assim que a câmara vislumbra o primeiro olhar de Aschenbach sobre Tadzio (Björn Andresen), um jovem adolescente polaco que encarna o ideal de beleza etérea, percebemos, de imediato, que este é o início do caminho para a sua destruição.
Todas as premissas acerca da intelectualidade e da erudição, que o compositor tinha como certas, serão anuladas perante uma vontade visceral de acompanhar todos os passos e contemplar aquele jovem até à exaustão, dissipando-se por completo a imagem daquilo que fora um dia. Aschenbach, numa tentativa vã de retardar o tempo, reflexo latente do seu desespero, recorre a artifícios estéticos, que o tornam repulsivo e patético.
Visconti filma, ao longo da narrativa, flashbacks para contextualizar o percurso de Aschenbach com o intuito de conferir humanismo ao personagem. Nessa retrospetiva, Aschenbach recorda alguns momentos da sua vida que são o espelho de representações da sua dimensão enquanto homem.
As cenas na praia são deslumbrantes, sob o olhar mágico de Visconti, que capta a beleza no seu estado mais puro, com os acordes do Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler a soarem numa simbiose perfeita. No entanto, Visconti mostra-nos também um outro lado de Veneza nada idílica com imagens carregadas de grande dramatismo. Dois cenários distintos que representam o contraste entre a juventude de Tadzio e a decrepitude de Aschenbach.
O compositor de outros tempos evaporou-se; jamais poderá voltar a contemplar o seu objecto de encantamento. Mesmo perante a epidemia de cólera que assolou Veneza, Aschenbach prefere a morte à ausência de Tadzio.
Luchino Visconti teve o grande mérito de não desvirtuar a obra literária de Thomas Mann, criando a sua própria identidade com enorme virtuosismo. Encontramos apenas uma diferença significativa. No romance, o protagonista é escritor. O realizador optou por transformá-lo num compositor porque era sua convicção de que Thomas Mann teria construído o personagem de Aschenbach, inspirado em Gustav Mahler.
Dirk Bogarde é exímio no papel de Aschenbach. Numa narrativa que vive de silêncios, a sua interpretação ganha ainda maior relevância através dos seus olhares, dos gestos efeminados, sendo a expressão corporal praticamente a sua grande força. As palavras serão sempre parcas para fazer justiça à sua atuação.
A cena final do filme, talvez uma das mais belas a que assisti, culmina numa união de elementos suprema, como uma sinfonia em que as notas se conjugam numa composição monumental a que assistimos extasiados e em plena harmonia.
Todos os nossos medos retratados. A obsessão pelo belo; a angústia pela decadência física; a solidão… a MORTE, em Veneza, sob o manto do Sirocco, ecoando a partitura sublime de Mahler. Se nada disto convencer, fica a partida de Aschenbach e o eterno Tadzio.