Uma pessoa sem documentos é uma pessoa que não existe.
Durante os primeiros sete anos que Délio Jasse viveu em Portugal, ele esperava existir – ao menos, perante o estado português. “É esse o parâmetro que o governo tem”, conta o artista de 43 anos, que em 1999 saiu da sua cidade-natal, Luanda, para viver em Lisboa. “Eu tinha um grande receio da polícia. Evitava até brincar na rua para não chamar atenção. Eu pensava que poderia ser repatriado a qualquer momento”. Enquanto ele esperava a formalização da sua cidadania – seu bisavô era português –, Délio Jasse estudava e colecionava documentos de outras pessoas. Foi aí que decidiu a motivação de todo o seu trabalho artístico: discutir sobre a mal-resolvida relação de Portugal com as suas ex-colônias a partir de documentos, fotografias e arquivos desta história em comum.
Em cartaz no Pavilhão Branco, a exposição As Colónias Vão Ser Países revela a maneira como, nas mãos do artista, testemunhos do passado colonial se tornam os mesmos objetos de questionamento da história e do poder da narrativa. Com doze séries e trabalhos, Jasse ocupa o cubo de vidro dos Jardins do Palácio Pimenta, no Campo Grande, em Lisboa, com obras que fazem uso de técnicas imagéticas primorosas. Sobre as fotografias que ele vem comprando principalmente na Feira da Ladra (“estou encontrando toda a história dos países à venda por céntimos”), o artista usa carimbos para estampar as palavras “Caducado”, “Inutilizado”, “Liquidado” e “Cópia” por toda a mostra. São categorizações usadas pelo estado ditatorial português para validar e anular documentos de cidadãos das ex-colônias. “Os carimbos são da época, não são criados por mim. Não vale a pena criar nada, porque está tudo aí”.
Na série As colônias vão ser países, ele usa impressão digital e serigrafia sobre tecidos brancos quase transparentes, para discutir tanto o véu que encobre a nossa visão embaçada da história, como comentar sobre o “casamento” de angolanos e portugueses, em que negros eram apadrinhados e tinham que adotar nomes e sobrenomes dos seus colonos. Na série Esgotada II, ele usa cianotipia e escritos originais de passaportes cancelados em vermelho. Em um cubo de madeira especialmente montado para a exposição, diversos projetores sobrepõem fotografias em preto e branco que nos ajudam a questionar como foi construída a nossa memória coletiva.
Ao mesmo tempo em que ele vai trabalhando com diferentes técnicas fotográficas, Jasse agarra no fio da história para contá-la novamente. Mas não mais pelo olhar do português, que sempre foi o detentor desta narrativa. “Os próprios angolanos não tinham como fotografar. Quem tinha o poder, era quem contava a história. Para contar a história dos meus avós, eu ainda preciso perguntar para Portugal”.
O trabalho de artistas como Délio Jasse tem, mais do que nunca, o importante papel de colocar essas questões sob o holofote enquanto, como discussão pública, ainda são varridas para baixo do tapete. O governo português acaba de rejeitar a hipótese de reparação a ex-colônias após a declaração do Presidente Marcelo Rebelo de Souza, que reconheceu responsabilidades de Portugal por crimes cometidos durante a era colonial. É por isso que Jasse nos faz olhar para as questões de decolonialidade, ou seja, a ideia de que as sociedades não se libertaram completamente do colonialismo com a independência, porque as dimensões institucionais dos processos colonialistas permaneceram.
Jasse vive há 9 anos em Milão, onde tem um completo laboratório de fotografia dentro de casa, e dá aula sobre técnicas alternativas de imagem da NABA – Nuova Accademia di Belle Arti. Ele instrui estudantes no processo de desengavetar e questionar as fotografias de família, frequentemente relacionadas ao fascismo italiano.
Na vizinha Veneza, acontece a 60.ª edição do mais tradicional e celebrado evento de arte da terra. Intitulada Estrangeiros por toda parte, a Bienal de Veneza tem como mote questões contemporâneas relacionadas à xenofobia, racismo, e fronteiras reais e imaginárias de um mundo que atravessa a maior crise migratória da história humana: 108.4 milhões de pessoas estão em situação de deslocamento, de acordo com a Alta Comissão para Refugiados da ONU. Artistas como o também angolano Kiluanji Kia Henda, o brasileiro Dalton Paula, a algeriana Lydia Ourahmane, o britânico Yinka Shonibare, e a franco-marroquina Bouchra Khalili são alguns entre os vários artistas internacionais da Bienal que investigam pautas decoloniais em seus trabalhos. O Pavilhão de Portugal, Greenhouse, das curadoras e artistas Mónica de Miranda, Sónia Vaz Borges e Vânia Gala, é um jardim crioulo que discute diáspora e resistência.
“Qualquer artista pode e deve tocar nesse esses assuntos”, defende Jasse. “Não importa a sua cor, não importa de onde eles vêm. O importante é fazê-lo”.
As Colónias Vão Ser Países, de Délio Jasse, está patente nas Galerias Municipais de Lisboa – Pavilhão Branco, em Lisboa, até 30 de junho.
Nota: a autora não escreve ao abrigo do AO90.