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O instante antes de tudo: Incipit de José António Quintanilha
DATA
02 Mai 2025
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AUTOR
Carla Cabanas
No Laboratório de Química Analítica da Antiga Faculdade de Ciências, hoje espaço expositivo do Museu de História Natural e da Ciência, José António Quintanilha propõe uma arqueologia do visível que não recua apenas aos primórdios da imagem, mas aos primórdios do próprio humano.

No Laboratório de Química Analítica da Antiga Faculdade de Ciências, hoje espaço expositivo do Museu de História Natural e da Ciência, José António Quintanilha propõe uma arqueologia do visível que não recua apenas aos primórdios da imagem, mas aos primórdios do próprio humano. A exposição Incipit convoca a ideia de começo — não como ponto fixo no tempo, mas como um princípio que se repete e se reinventa, tanto no gesto artístico, na investigação científica ou na própria condição de ser humano

Nas duas grandes ampliações analógicas que compõem Origens Visíveis #1 e 2#, Quintanilha recupera a figura de Lucy e do seu congénere masculino — ambos Australopithecus Afarensis — a partir de réplicas museológicas. A textura densa e quase táctil das imagens, confere-lhes um peso temporal que as aproxima do arquivo e do vestígio. O que vemos não é apenas uma reconstituição do passado, mas uma interrogação sobre os modos como se dá a ver ao presente. Lucy, fóssil emblemático da evolução humana, surge como um espelho especulativo. Olhar o seu rosto reconstruído é reconhecer algo de nós próprios que resiste à identificação imediata. É nesse intervalo que a obra opera: entre a familiaridade e a estranheza. É claro que a imagem sugere um reencontro com as nossas origens, mas nada desse reencontro pertence ao campo da nostalgia. Neste encontro surgem inquietações que nos remetem para a existência: afinal, quem somos nós se não uma sucessão de tentativas de nos representarmos a nós mesmos?

É esta mesma pergunta que atravessa Modus Operandi: Ciclos e Transitoriedade, instalação constituída por dois projetores de slides que contêm 80 diapositivos cada, projetados em contínuo, mas com tempos diferentes. As imagens incluem rostos humanos, esculturas clássicas, animais, paisagens e cenas urbanas, e sucedem-se como fragmentos de um pensamento visual em fluxo. A cada nova sincronia gera-se uma relação efémera, uma associação momentânea entre duas imagens que não foram concebidas para estar juntas, mas que se encontram. Há algo de profundamente humano nesta instalação: a tentativa constante de criar sentido a partir do acaso, de ligar uma figura a outra, um gesto a um lugar, um rosto a uma memória. A presença constante de corpos e rostos, mesmo quando mediada por esculturas ou outras representações, reforça essa obsessão identitária.

O som mecânico da troca de slides marca o tempo como uma pulsação quase ritual. Cada clique anuncia o fim de uma relação e o início de outra, numa sucessão exaustiva de possibilidades combinatórias, onde a repetição de pares de imagens acontece apenas a cada 12 horas. Nesse ciclo, Quintanilha opera a montagem como uma coreografia da espera e do acaso, em contracorrente à velocidade com que hoje consumimos imagens.

Pensar a origem é confrontar um limite. Não se trata de um regresso idílico a um ponto inaugural, mas de uma inquietação fundamental: de onde viemos, e o que significa ter começado? A obsessão com a origem, tão presente na arte como na ciência, revela uma tentativa de nomear aquilo que nos escapa. A origem é um lugar de tensão entre o que somos e o que deixamos de ser, onde cada gesto de procura pelo princípio é, também, um gesto que reconhece a possibilidade do fim. E talvez seja precisamente por isso que os começos nos fascinam, porque nos lembra que existimos no intervalo entre o que teve início e o que terá fim. A escuta da origem é, afinal, uma escuta do tempo e do modo como este nos atravessa.

O título da exposição, Incipit, longe de remeter apenas ao início literal de algo, evoca a potência de todos os começos. A origem não está atrás de nós, mas ao nosso lado, a repetir-se em cada gesto de ver, em cada tentativa de atribuir sentido ao que somos. Lucy, fóssil e figura, projeta a sua sombra lembrando-nos que fomos matéria antes de sermos nome, que cada início é também uma pergunta sobre o fim, porque olhar para a origem é pensar a finitude.

A exposição de José António Quintanilha está patente no Museu de História Natural e da Ciência até 4 de maio de 2025.

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