13 Mai 2025
Entrevista com Annet Dekker - Cluster Arte, Museus e Culturas Digitais
Entrevistapor José Pardal Pina
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"A preservação digital constitui não só um desafio para as organizações, mas também para o ambiente. Resumindo, surge uma tensão entre a necessidade de proteger o património digital para futura investigação, memória cultural e evidência científica, e a exigência permanente de atualizar ferramentas e métodos para garantir a sobrevivência das obras."

Coordenado por Helena Barranha, o Cluster Arte, Museus e Culturas Digitais foi lançado em abril de 2021 no âmbito de uma conferência internacional, com o grande desígnio de estudar o impacto das tecnologias de informação sobre os museus e o sistema global da arte. A compilação das intervenções resultantes desse evento – editadas num e-book disponível no website do Cluster – constitui um testemunho crítico fundamental da complexa relação entre cultura e tecnologia. A série de entrevistas que a Umbigo e o Cluster têm promovido procuram clarificar, expandir e investigar a condição pós-digital, os desafios para as democracias e o potencial que o digital e o virtual representa para os museus e para o mundo da arte. Annet Dekker tem sido uma referência no campo da curadoria digital e do arquivismo, com vários livros editados a este respeito: Documentation as Art (coeditado por Gabriella Giannachi, Routledge, 2022), Curating Digital Art. From Presenting and Collecting Digital Art to Networked Co-Curating (Valiz, 2021), Collecting and Conserving Net Art (Routledge, 2018), Lost and Living [in] Archives. Collectively Shaping New Memories (Valiz, 2017) e Speculative Scenarios, or What Will Happen to Digital Art in the (Near) Future? (Baltan Laboratories/Virtueel Platform, 2013). Dekker foi Investigadora de Conservação Digital na Tate, tutora principal no Piet Zwart Institute, bolseira no Het Nieuwe Instituut, curadora na SKOR (Foundation for Art and Public Domain) e programadora na Virtueel Platform. Atualmente, ocupa o cargo de Professor Associado em Estudos de Arquivo e Informação e Análise Cultural na Universidade de Amesterdão, bem como o de professora convidada e codiretora no Centre for the Study of the Networked Image, na London South Bank University. A entrevista que se segue apresenta respostas densas mas fundamentais para os que estudam uma área que subverteu e acrescentou novos modos de investigação e criação à arte contemporânea e respetivo estudo. Dekker fala do seu percurso profissional e dos desafios da curadoria digital, ao mesmo tempo que reflete sobre os grandes assuntos do momento, nomeadamente a proliferação da Inteligência Artificial e os conflitos entre os interesses da Big Tech e a coisa pública, destacando projetos de referência e ideias para o futuro.

José Pardal PinaO que a trouxe para o campo da curadoria e da preservação da arte digital?

Annet DekkerComecei a envolver-me em projetos curatoriais no final da década de 1990. Nessa época, tinha terminado os meus estudos em cultura visual, com especialização nos estudos de género e uma graduação em psicologia dos media, e o meu interesse recaía sobretudo na cultura popular. Embora existissem poucas oportunidades de trabalho no setor cultural, tive a sorte de coorganizar um pequeno projeto de investigação com uma amiga que estava a trabalhar para a estação comercial holandesa Veronica, vocacionada para programação juvenil em televisão e rádio. A empresa estava interessada em explorar as novas fronteiras tecnológicas, especialmente a internet emergente, mas tinham dúvidas quanto ao seu potencial. Para preparar esta nova fase, pediram-nos que convidássemos um conjunto de oradores inovadores sobre o tema, para atualizarem a equipa no que respeita ao estado da arte. Contactámos cerca de dez pessoas, o que me permitiu ficar ligada ao meio da criação digital nos Países Baixos, onde entidades como a V2_ e a Waag Society assumiam uma posição de vanguarda em arte digital. Durante dois dias esses especialistas partilharam as suas visões de futuro, salientando a relevância da cultura digital. Graças a essa experiência, aprofundei laços com essas organizações e comecei a fazer voluntariado noutras. Ao início, nunca tencionara vir a tornar-me curadora nem compreendia plenamente o que a função implicava. Nessa altura, interessava-me mais a publicidade, movida pelo meu fascínio por imagens, pela cultura visual e pela cultura pop. Acreditava que trabalhar numa agência publicitária permitir-me-ia influenciar o mundo através das imagens; porém, depressa me apercebi de que a realidade do sector não correspondia às minhas expectativas. Apesar da influência significativa exercida pela publicidade, a sua criatividade é fortemente condicionada pelas ideias e desejos específicos dos clientes. Essa conclusão conduziu-me às artes, onde encontrei maior liberdade e potencial para mudanças significativas. Foi então que passei a colaborar de forma voluntária com vários festivais e organizações artísticas. O que sempre me cativou em especial foi a abundância de oportunidades e a diversidade de abordagens na curadoria, sobretudo no universo da arte digital. Apesar do financiamento reduzido, existia uma rede coesa de pessoas dispostas a colaborar, trocar ideias e partilhar recursos entre disciplinas - fossem elas artistas, curadores, programadores ou técnicos. Esse ambiente fomentava uma experimentação ilimitada com a tecnologia, modos de apresentação de projetos artísticos e abordagens colaborativas. Talvez por força de percalços inevitáveis, muitas vezes atribuídos mais à falta de verbas do que de entusiasmo dos participantes, a experimentação tornou-se fulcral, marcada pelo constante remexer nas ferramentas fornecidas pela tecnologia, nos formatos expositivos e nos processos de trabalho em conjunto. Cerca de dez anos depois, vários artistas começaram a queixar-se que as suas obras estavam a desaparecer, devido a todo o tipo de problemas e que os métodos e estruturas convencionais de conservação não serviam para o tipo de produção que criavam. Foi então que decidi focar-me na preservação, procurando soluções para salvaguardar este tipo de projetos, frequentemente voláteis. Já existiam iniciativas sobre conservação de arte temporal e digital e, embora muitos projetos continuassem ancorados em formas de pensar e agir organizacionais, havia uma comunidade disposta a experimentar, partilhar conhecimentos e cooperar com outros, para lá das estruturas institucionais. Em suma, o meu interesse inicial na curadoria e na preservação da arte digital nasceu sobretudo de uma prática investigativa ou operativa, alicerçada na experimentação e impulsionada por um grupo de entusiastas individuais que davam ênfase a outras perspetivas e potencialidades.

JPPAs redes sociais tornaram-se as plataformas privilegiadas através das quais muitas pessoas acedem às obras de arte. Qual será, na sua opinião, o futuro destes meios no mundo da arte e, sobretudo, no que respeita aos museus, que os têm usado para divulgar arquivos e programações?

ADNa última década mudaram muitas coisas na forma como os museus se relacionam com o seu público. Antes era difícil incluir os contributos ou documentação de visitantes no âmbito de exposições ou atividades arquivísticas; hoje em dia, essas dimensões são levadas bem mais a sério pelos museus. Recordo-me do projeto The Gift (2000/2008) do artista conceptual Jochen Gerz, apresentado no SFMOMA no âmbito do The Art of Participation em 2008, em que os visitantes podiam tirar um retrato no espaço da galeria. Após a mostra, recebiam a foto de outra pessoa, com a condição de pendurarem essa imagem em casa, registarem o resultado e devolverem-no ao museu, que o integraria no seu arquivo. Mais de dez(!) anos depois, em 2019, o mesmo museu organizou snap+share. transmitting photographs from mail art to social networks, já a responder à generalização das redes sociais. Nesse contexto, voltou a ser realizado o projeto 241543903 (2009) de David Horvitz, desenvolvido dez anos antes. Com esse projeto, Horvitz refletia sobre a criação de um meme. O artista enfiou a cabeça num congelador e publicou a imagem com a instrução ‘tira uma foto com a cabeça num congelador’. No espaço de uma semana, a publicação tornou-se viral. Horvitz guardou as imagens geradas por esta performance no Tumblr, e uma década depois o SFMOMA reencenou a performance no seu espaço (frigorífico incluído), desencadeando uma nova onda mediática. Tudo isto para dizer que as instituições estão a tentar acompanhar a corrente, mas muitas vezes com um atraso de cerca de uma década relativamente ao mainstream. De facto, tal como referiu na sua pergunta, as plataformas sociais influenciam cada vez mais a arte e as organizações, sobretudo desde a pandemia, que, quando obrigou ao encerramento de portas dos espaços públicos, os levou a criar e desenvolver estratégias para a Internet, numa tentativa de manter o seu financiamento e a atenção por parte do público. De um dia para o outro, museus considerados antiquados tornaram-se fenómenos virais no TikTok e noutras plataformas online (Dekker, 2021). Ao mesmo tempo, lembro-me de Elliott e Pita, da plataforma Off Site Project, referirem que se aperceberam que as escolhas que faziam terem passado a ser parcialmente influenciadas por métricas das redes sociais (Arreola-Burns e Burns, 2020). Essa consciência está mais amplamente refletida hoje, especialmente após a compra do Twitter por Elon Musk. Com as estratégias recentes cada vez mais politizadas a influírem nas plataformas digitais e nos motores de busca, observa-se uma deslocação para serviços menos centralizados. Embora considere importante que os museus adotem novos modelos de participação e promovam estratégias para conteúdos colaborativos que estimulem o pensamento crítico e a comunicação relevante, depender das grandes plataformas sociais atualmente parece-me um caminho arriscado. Além de serem conhecidas por fomentar hábitos viciantes, as recentes vagas de vídeos falsos gerados por IA ressuscitam o conceito de uncanny valley (“vale da estranheza”), cujos efeitos ainda estamos longe de compreender. Acresce que a mudança levada a cabo pelo TikTok de deixar de se basear num “barómetro social”, assente em ligações e comunicações interpessoais, para depender de um “barómetro de interesses” construído a partir da análise e vigilância de dados para inserir conteúdos comerciais nos feeds, deve ser levada a sério (Wei, 2020). Se os museus seguirem o mesmo trilho, não apenas perpetuam a ideia de museu-enquanto-banco de dados (Pepi, 2014) como a aceleram, ao cederem à datificação imposta pela lógica das plataformas comerciais, negligenciando ou mesmo ignorando o valor dos contextos curatoriais. Por outras palavras, em vez de restabelecerem modos tradicionais de trabalho e de relações de poder e autoridade, os museus deveriam preocupar-se menos com a simples difusão de conteúdos através destas plataformas e mais com a integração dos públicos nos seus fluxos de trabalho, por exemplo criando redes sociais dentro dos seus próprios sites. É curioso como muitas instituições não mostram os seus feeds nas respetivas páginas, algo que, com uma API simples, seria controlável com mais “segurança”. Estão a sustentar a clivagem entre a sua autoridade sobre as coleções e a forma como comunicam, ao excluir quaisquer debates que possam ocorrer nas redes sociais. Desta forma, não estão ativamente a conectar ou a convidar os visitantes para o seu universo. O SFMOMA, por exemplo, tem 465.000 seguidores; quantos manteriam o interesse se tivessem de mudar para uma microplataforma mais dedicada e fiável, hospedada no próprio site do museu? Enquanto cresce a tendência para as pessoas se juntarem a microcomunidades, o passo seguinte seria interligar essas redes hiperlocais ou temáticas, uma iniciativa que o sector cultural poderia liderar ou, pelo menos, facilitar essa interconexão entre redes especializadas. Deste modo, aproveita-se o alcance conquistado através das redes sociais, canalizando-o para projetos mais focados, colaborativos, de proximidade, entre instituições, interativos ou de contributo coletivo, ou residências ou outras formas de participação que fomentem relações mais profundas com os seus públicos, desde que alinhadas com os seus interesses.

JPPDe que modo é que a Inteligência Artificial está a ser utilizada no tratamento de arquivos? Vê-a como uma aliada potencial ou como uma força obscura e enganadora, que pode ameaçar e moldar a forma e a escrita da história?

ADSou bastante crítica quanto ao uso da IA, algo que talvez se note nas respostas anteriores, mas recentemente realizei algumas experiências com Gabriella Giannachi sobre a sua aplicação no processo de documentação. Não há dúvida que o debate sobre o (ab)uso desta tecnologia está em plena ebulição. Embora reconhecendo os desafios ambientais, económicos, políticos, técnicos e psicológicos colocados pela IA, bem como a forma como é treinada a partir de bases de dados colossais, frequentemente tendenciosas ou pelo menos de carácter muito subjetivo, existem contextos em que a IA pode ser útil. Em vez de meramente registar acontecimentos, os algoritmos podem ser usados para acelerar tarefas morosas, resolver problemas ou elaborar previsões. Alimentados por conjuntos de dados diversos, a sua função é gerar rapidamente soluções para problemas concretos. Isto é proveitoso em tarefas práticas como registar ou extrair, mas também levanta questões interessantes sobre o seu papel em práticas como a documentação. Com a ênfase a deslocar-se para a rápida extração de dados e otimização, a documentação deixa de olhar apenas para o passado e passa a ser cada vez mais impelida pelos dados a projetar futuros potenciais. Segundo a jurista Antoinette Rouvroy, esta mudança significa que a documentação “já não se produz mais sobre o mundo, mas a partir do mundo digital” (Rouvroy, 2013, p. 147, itálico no original). Por conseguinte, longe de ser apenas orientada para o futuro no sentido de ativar obras existentes em coleções de museus, a documentação tem o potencial para evoluir ou transformar-se em algo inteiramente novo. Embora isto pareça futurista ou, tal como referiu, uma força obscura que molda a história, no fundo apenas torna mais explícita a forma como o passado sempre esteve presente. Por outras palavras, surge um arquivo mais generativo, onde os registos não são apenas entendidos no contexto em que são usados, mas podem também originar novas versões de informação antes desconhecida ou invisível. Trata-se de uma mudança pequena mas relevante, que mostra não existir uma fase final na gestão de registos; estes estão em permanente devir e são utilizados de modos diferentes por pessoas distintas - uma ideia já debatida na informática de arquivo [ou nos sistemas de informação arquivística] (McKemmish, 1994).

JPPOs centros de dados têm sido vistos como enormes consumidores de energia e uma ameaça ambiental. Mas recentemente referiu que a “sustentabilidade digital” é um “oxímoro” (Dekker, 2020) no que respeita à conservação. Pode elaborar a que se refere?

ADNa minha investigação sobre métodos de preservação de arte digital reparei no esforço enorme necessário para manter operacionais até projetos artísticos relativamente pequenos. Estratégias como migração, emulação, virtualização e documentação estão a ser implementadas para prolongar a vida do património digital, mas a aposta em estratégias de preservação técnicas muito sofisticadas revelou-se, além de insustentável, discutível. O cerne do problema está na própria abordagem de preservação: estes procedimentos arriscam-se a alterar a forma e o conteúdo das obras. Para além disso, cada atualização de software altera ainda mais o ambiente mediático, afetando a estética e a funcionalidade da própria arte. Isto cria uma necessidade constante de conhecimento e perícia especializados para enfrentar novos desafios técnicos, o que constitui um fardo continuado para a maioria das organizações. Acresce que o ritmo implacável da inovação tecnológica acarreta um custo ambiental significativo, pois a energia despendida na preservação digital resulta em pegadas de carbono elevadas. Assim, a preservação digital constitui não só um desafio para as organizações, mas também para o ambiente. Resumindo, surge uma tensão entre a necessidade de proteger o património digital para futura investigação, memória cultural e evidência científica, e a exigência permanente de atualizar ferramentas e métodos para garantir a sobrevivência das obras. Esta tensão aumenta a pressão sobre infraestruturas organizativas e tem ramificações ecológicas, tornando a sustentabilidade digital um dilema de preservação ou, se quisermos, um paradoxo. Para lá do papel das ferramentas (digitais) em minimizar o espaço físico de armazenamento, ou a exploração de materiais biodegradáveis e renováveis para práticas arquivísticas e de conservação, estou mais interessada em desenvolver modelos comunitários de tutela que contestem lógicas centralizadas e extrativistas. Investigo de que modo noções como efemeridade, perda, narrativa e colaboração, podem posicionar os arquivos e práticas de preservação como agentes e métodos vitais na transição para ecossistemas de conhecimento mais sustentáveis. O meu objetivo é avançar para uma tutela para as gerações futuras mais guiada por critérios ecológicos, que equilibre memória e conservação. Isto pode implicar que arquivar e preservar se tornem mais ativamente práticas intervencionistas e ativistas, assumindo um papel crítico na forma como dados e informação são disciplinados, reproduzidos e normalizados, ao mesmo tempo que sugerem possibilidades para que arquivistas, curadores e utilizadores possam intervir nos seus modos de criar, usar e partilhar informação. Para além de servir como crítica, uma tal abordagem aponta para uma prática especulativa positiva, ao repensar abordagens de preservação e instituições arquivísticas, e simultaneamente explorar ou imaginar futuros diferentes para os arquivos, que permitam a emergência de formas, géneros e espaços potencialmente mais equitativos, abertos à mudança crítica, à ambivalência e à imaginação.

JPPComo caracterizaria o espaço-tempo das exposições online? Devemos tratá-lo como uma espécie de emulação do espaço físico ou, antes, conceber e desenvolver ferramentas conceptuais, percetivas e de design novas para apresentar, por exemplo, net art?

ADNa exploração em curso da estética e de formas narrativas, espaço e tempo são temas centrais na conceção expositiva e curatorial. Contudo, no contexto da web, estes conceitos assumem contornos ligeiramente distintos. Um website, por exemplo, pode ser acedido, localizado e experienciado praticamente em qualquer lugar e momento. Embora menos constrangido pela arquitetura física, ainda depende de uma localização específica: o endereço IP de um website corresponde a um URL (Unique Resource Locator), um tipo específico de URI (Universal Resource Identifier), que apenas pode ser acedido através de um determinado protocolo, como http:// ou https://. Assim, um website continua subordinado à acessibilidade de um servidor e à capacidade do proprietário para o manter, quer atualizando software, quer pagando contas ou garantindo a sua disponibilidade. Apesar de um website parecer um ente sem sítio ou espaço, ele está sujeito a uma série de constrangimentos técnicos e humanos, tal como uma galeria física. Para compreender plenamente como funcionam as exposições online - como se orientam em termos de distância e tempo, como criam cenografias ou coreografias, subvertem o espaço ou estabelecem relações (às vezes diretas) entre obras e públicos -, é necessário aprofundar o entendimento da ideia de espaço na web. O mesmo é válido para a noção de tempo em sentido digital, pois a internet proporciona um terreno ideal para explorar entendimentos alternativos do tempo. Muitos falaram da “detemporalidade” do tempo em rede, argumentando que o fluxo veloz de informação cria uma compressão temporal na qual o tempo como processo parece desaparecer. Estas observações muitas vezes retratam a web como sendo fluida e contínua, um fluxo inconsútil e ininterrupto de informação e interações. Contudo, na prática, a maioria do tráfego na web é mais volátil, mais instável, é menos um caudal uniforme que uma torrente impetuosa, que jorra a velocidades diferentes, com quebras de ligação, bloqueios, hiperligações partidas e becos sem saída. Nesse sentido, ao invés de detemporalidade, o espaço online encarna uma descontinuidade temporal ou tempo fragmentado. De forma geral, espaço e tempo na web permanecem pouco explorados no contexto das exposições virtuais. Os curadores recorrem normalmente a “plataformas curatoriais” que propõem modelos pré-formatados a imitar a disposição física de museus ou galerias comerciais, em vez de investigar o potencial singular do espaço-tempo digital.

JPPHá algum tempo li What Makes a Great Exhibition? (2007), editado por Paula Marincola. Apesar das ideias e pistas interessantes acerca da conceção e design de exposições, parece-me que, com o rápido desenvolvimento das mostras online e das obras nativas digitais, a coletânea depressa ficou incompleta. Dado estar profundamente implicada neste tipo de investigação, gostaria de lhe perguntar o que, afinal, faz uma grande exposição online ou, de forma mais ampla, como podemos fazer curadoria de arte digital na e para a internet.

ADEsta é uma questão difícil de responder, porque não há uma receita universal. Até há pouco tempo, os museus eram vistos sobretudo como espaços de fruição passiva, com objetos em vitrinas e pinturas instaladas à altura dos olhos, dispostos e iluminados de forma específica. Embora esta situação esteja a ser reavaliada, como ilustrei com o exemplo do SFMOMA, as exposições na web ainda não possuem um cânone equivalente. Em 2020, juntamente com as curadoras e investigadoras Marialaura Ghidini e Gaia Tedone, desenvolvi The Broken Timeline, uma cronologia histórica de exposições online. Começámos com cerca de 500 casos, mas acabámos por nos concentrar naqueles que evidenciavam as características singulares da web: o seu papel como meio de comunicação, a sua volatilidade e a sua dependência do ambiente técnico e da intervenção dos utilizadores. Destacámos exposições em que a lógica “(co)curatorial em rede” foi decisiva, portanto, situações em que existe uma colaboração entre o curador e o contexto técnico, reapropriando ou subvertendo ferramentas e plataformas digitais existentes. Importava também analisar como as mostras evoluem ao longo do tempo, seja por meios técnicos, seja pela participação dos utilizadores. Por exemplo, observámos experiências com algoritmos, funcionalidades específicas de plataformas ou cocriação interativa, em que surgem formas alternativas de participação, espaço e tempo. Incluem-se projetos com obras geradas, narrativas temporais, fluxos de dados em tempo real ou webcams que transmitem continuamente durante dias ou existem por períodos de tempo definidos, lembrando performances. Outras iniciativas transferem o controlo para o público, oferecendo ficheiros ZIP que transformam o seu ambiente de trabalho no espaço expositivo, possibilitando reapropriações de conteúdos, criar mostras pessoais ou participar em eventos de cocuradoria colaborativa (por exemplo, em Google Docs). São exposições focadas na participação dos utilizadores - através da reapropriação ou subversão de ferramentas digitais existentes - e são dinâmicas, evoluindo ao longo do tempo graças às intervenções de curadores, artistas e visitantes.

JPPDe que forma a arte digital e a net art têm contribuído para expandir a História da Arte?

ADA meu ver, a arte digital e a net art desempenharam um papel determinante na expansão da História da Arte ao questionar ideias tradicionais sobre o que pode ser arte, como se cria e como se experiencia. Contudo, têm havido poucos estudos históricos rigorosos sobre o envolvimento (online) dos museus com a arte digital ou sobre como poderiam estabelecer ligações inclusivas com audiências globais mediante arte digital e exposições na web. Talvez não seja surpreendente que as instituições ainda não tenham explorado profundamente os exemplos pioneiros de arte e exposições digitais, dados os desafios envolvidos na construção de uma trajetória histórica abrangente para estas formas artísticas e curá-las online. Casos antigos - e mesmo alguns mais recentes -, deixaram de funcionar, foram removidos ou apagados devido a atualizações de software ou simplesmente desapareceram na torrente de dados; além disso, poucos projetos de arquivo se dedicam à net art e às mostras baseadas na web, e a expansão e comercialização aceleradas da internet esbateram as distinções do que constitui ou não uma exposição. Mantém-se ainda uma ênfase na “fratura digital” entre arte digital/exposições online e formatos artísticos mais convencionais, bem como entre o espaço físico (do museu) e o virtual, aprofundando o fosso entre estes reinos e essencialmente complicando as tentativas de cruzar discursos e potenciar as suas potenciais intersecções.

JPPNão há muito tempo, Franco ‘Bifo’ Berardi escreveu na e-flux que, “devido à instantaneidade e à virtualização, a relação entre conceção e execução alterou-se de tal forma que o comportamento de quem cresceu nas últimas três décadas se torna cada vez mais inexplicável para a ciência psicológica e a terapia psicanalítica”. Antes, sublinhara que ocorreu “uma reformatação digital do sistema psiconeurológico” (Berardi, 2025), tornando inoperante todo o pensamento crítico e comportamento empático. Esta questão tem-se colocado neste campo de investigação? Estaremos condenados a uma experiência artística de breve duração, em que a compreensão e fruição da arte são fenómenos fugazes?

ADNão posso responder cabalmente a isso, dado não ser um tema que eu tenha estudado a fundo, mas essa leitura parece-me um olhar convencional, que encara muitas vezes as novidades com desconfiança. No âmbito do projeto de investigação Documenting Digital Art examinámos os hábitos em mudança na criação de documentação, sobretudo para além da perspetiva institucional, e constatámos como a diversidade de registos enriquece não só a História da Arte e a preservação, mas também o envolvimento do público. É verdade que, tal como mencionado antes, tem ocorrido uma deriva para a “Instagramabilidade” de exposições e obras, à semelhança da pressão crescente para performar nas redes sociais; contudo, isso não significa obrigatoriamente que a atenção à arte tenha diminuído. Pode até argumentar-se que há mais interesse pela arte do que nunca. Por isso, em vez de se lamentar o declínio do pensamento crítico ou do comportamento empático, importa mais perguntar como - ou melhor, quando - é que os museus e o sector cultural no seu todo (públicos incluídos) recuperarão o controlo. Não para reclamar a sua autoridade institucional, mas para aproveitar a expansão das audiências conquistadas nesta era de plataformas e reconhecer os contributos que esses públicos podem dar para melhorar a contextualização das suas coleções, bem como o trabalho nesses espaços. As plataformas das redes sociais prosperaram à custa das falhas institucionais; está na hora de as instituições colherem esses frutos e reconfigurarem-se como zeladoras fiáveis e equitativas do presente.

JPPComo encara as parcerias entre instituições públicas e empresas tecnológicas no que toca à digitalização?

ADOs museus são muitas vezes descritos como a “cola da história”, funcionando como espaços cruciais para alcançar um reconhecimento histórico artístico alargado. Uma das crenças prevalecentes é a de que é o contexto ou espaço museológico que valida uma obra de arte. A instituição continua a ser vista como filtro e guardiã essenciais; entrar no cânone, ser colecionado e exposto por um museu continua a ser considerado importante. Ao mesmo tempo, cresce o número de vozes que exigem das empresas tecnológicas uma retribuição a quem deu forma aos seus dividendos visuais. Embora eu ache que valha a pena discutir o assunto, iniciativas como o Google Arts & Culture não são muito animadoras (Dekker, 2025). No fim de contas, uma empresa terá sempre outros interesses que podem não coincidir necessariamente com o que é mais benéfico para o utilizador. Há quem esteja a desenvolver os seus próprios métodos algorítmicos para desenterrar e preservar dados antigos - com alguém chegando a afirmar que a sua ideia é “perfurar núcleos de gelo”. Ainda assim, muitos defendem que cabe ao museu representar tanto o presente como o passado, sublinhando, porém, a necessidade de adaptação destas instituições. A arte digital deve ser preservada pelos museus, mas isso implica reconfigurar infraestruturas e mentalidades, algo que ainda está longe de acontecer. Para responder ao desafio, os museus necessitam de cultivar uma mentalidade que compreenda os contextos, ambientes, referências e finalidades das obras de arte digitais. Em última análise, trata-se de um processo contínuo de tradução, onde forma e técnica são tão decisivas quanto conceitos e estética.

Referências: · Arreola-Burns, P. and Burns, E. (2020). Volume, Social Media Metrics in Digital Curation. · Berardi, F. ‘Bifo’ (2025). New heroes - notes - e-flux, e-flux. Disponível em: https://www.e-flux.com/notes/649956/new-heroes (Consultado: 03-02-2025). · Dekker, A. (2020). Breathing Life into the Living Dead [Apresentação da conferência] The Dead Web – The End, Ludwig Museum, fevereiro de 2020, Budapeste. [Acesso no YouTube] https://www.youtube.com/watch?v=Cih0VNT5jxg&t=212s (Consultado: 30-02-2025). · Dekker, A. (2025) "Refiguring Digitization: Experiments in Heritage for Shared Futures." In Alternative Economies of Heritage, edited by Tracy Ireland, Denise Thwaites, Bethaney Turner. New York/London: Routledge, 2025: 124-136. · Dekker, A. (2021) The Art and Care of Online Curating, in Barranha, H. and Henriques, J. S. (eds.) (2021). Art, Museums and Digital Cultures – Rethinking Change. [E-book] Lisboa: IHA/NOVA FCSH e maat. DOI: 10.34619/hwfg-s9yy. · McKemmish, S. (1994). Are Records Ever Actual?, in McKemmish, S. and Piggott, M. (eds.), The Records Continuum: Ian Maclean and Australian Archives First Fifty Years. Disponível em https://doi.org/10.4225/03/57D77D8E72B71 (Consultado: 31-03-2025). · Pepi, M. (2014). Is a Museum a Database?: Institutional Conditions in Net Utopia, in Journal #60 December 2014 - e-flux. [online] E-flux.com. Disponível em: https://www.e-flux.com/journal/60/61026/is-a-museum-a-database-institutional-conditions-in-net-utopia/ (Consultado: 31-03-2025). · Wei, E. (2020) TikTok and the Sorting Hat. Remains of the Day, 04 agosto, 2020. Disponível em https://www.eugenewei.com/blog/2020/8/3/tiktok-and-the-sorting-hat (Consultado: 31-03-2025). · Rouvroy, A. (2013) The end(s) of critique: Data behaviourism versus due process, in Privacy Due Process and the Computational Turn: The Philosophy of Law Meets the Philosophy of Technology. Taylor & Francis, pp. 143-167. https://doi.org/10.4324/9780203427644.

BIOGRAFIA
José Pardal Pina é Editor Adjunto da Umbigo desde 2018. Formação: Mestrado Integrado em Arquitetura pelo Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa; Pós-graduação em Curadoria de Arte pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Curador dos projetos Diálogos (2018-2024) e Paisagens (2025-) na Umbigo.
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