14 Mai 2025
O cerco
Ensaiopor Fernando José Pereira
PARTILHAR
“Se o colonialismo histórico anexou territórios, os seus recursos e os corpos que neles trabalhavam, a acumulação de poder do colonialismo de dados é simultaneamente mais simples e mais profunda: a captura e o controlo da própria vida humana através da apropriação de dados que podem ser extraídos com fins lucrativos. Se assim for, então, tal como o colonialismo histórico criou o combustível para a futura ascensão do capitalismo industrial, também o colonialismo de dados está a preparar o caminho para um capitalismo baseado na exploração de dados.”1
Nada é mais comum no nosso tempo que a ideia de que não temos tempo. Esta é uma ideia que não é recente. Foi-se aproximando e, hoje, vivemos cercados por uma lógica temporal maquínica que procura o seu apogeu na conquista da instantaneidade. Vivemos subjugados a um tempo que não é humano; a um tempo criado por algoritmos e que nos deixa extenuados e anestesiados2. Contudo, um paradoxo manifesta-se claramente (embora seja singular). Existe, ou dito de outra forma, aprofundou-se o deslumbramento que a sociedade (nós) em geral tem para com a tecnologia que causa tal alteração. A nada disto é estranho, obviamente, toda a avalanche de novidade que o designado capitalismo de comunicação difunde diariamente nos seus diversificados canais. As novidades são diárias e cercam-nos por todo o lado, seja pela internet, seja pela televisão, seja pelos inúmeros painéis luminosos que invadiram as cidades...não há como escapar. E a cumplicidade vai aparecendo, mais e mais, nos procedimentos diários que, cada vez com mais intensidade nos interligam às máquinas numéricas.
Desde logo, a acto contínuo do scrolling em qualquer lugar onde possa ser realizado. As limitações não se aplicam a qualquer diferenciação perceptiva e específica, como, por exemplo, o acto vulgar de no meio de uma sessão de cinema, vermos a sala ficar encandeada por uma luz azulada que anula a obscuridade necessária à projecção do filme.
A presença massiva de telemóveis para fotografar as obras de arte dentro de qualquer museu – ou a selfie, que nos torna primeiro plano de uma obra que se encontra ao fundo e no fundo da profundidade de campo...e, por isso, tantas vezes desfocada. Reflexos daquilo que Anselm Jappe3 designa como o narcisismo exacerbado de uma sociedade autofágica.
Imagens para não serem vistas nunca mais. Ou, no limite, para serem vistas em condições que falseiam a visita ao espaço expositivo. Um exemplo relativamente recente: a exposição no Museu de Serralves do artista americano Mark Bradford titulada “Ágora”. A exposição contava com a presença de enormes pinturas para serem observadas/contempladas no espaço “público” do museu. A Ágora é, no seu significado mais prioritário, a designação de praça, lugar de assembleia ou reunião. É, portanto, um lugar de comunidade4. Uma comunidade (de espectadores) que ao visitar o museu tem (teria) uma expectativa de sentido muito própria: confrontar-se com o que lhe é apresentado e que dadas as condições peculiares do espaço em questão não são possíveis em outro qualquer lugar. Neste caso particular, mas, também, paradigmático (juntamente com outros exemplos, como veremos à frente), o espectador é confrontado com uma exposição de grandes pinturas em torno de um conjunto de tapeçarias do séc. XV intitulado “A caça do Unicórnio”. Não se pense, contudo, que se trata de uma exposição ilustrativa, documental, fora do seu tempo. Trata-se, antes, de uma mostra de obras que são conhecidas como “abstracção social”, obras que apesar da sua configuração muito próxima da abstracção, ou mesmo abstractas, trazem, nos materiais que as compõem, o social que impregna a sua pintura. Um exemplo conhecido é o da utilização de pequenos quadrados de alumínio que servem, na sua vida útil para a pintura de cabelos (a sua mãe é cabeleireira). Todas estas informações são importantes, no entanto, existe uma que, para o que nos interessa, é determinante: a sua escala. Falamos de pinturas que têm muito grandes dimensões e onde o espectador, quando se aproxima – um acto absolutamente necessário nestas obras – fica imerso nelas, tal a diferença de escala.
Ora, voltando ao problema da presença dos telemóveis no interior do museu, o simples acto de fotografar uma destas pinturas para mais tarde ver (quando houver tempo, quer dizer, nunca...) altera toda a condição perceptiva que o artista formula através da grande dimensão dos seus trabalhos: a escala inverte-se completamente: agora é um corpo a ver uma imagem num pequeno ecrã de 3 polegadas, ou seja, a enorme pintura, aqui, vista em forma liliputiana é que fica imersa na escala do corpo.
Tudo isto é estranho e, contudo, vulgar nos dias que correm.
Claire Bishop no seu último livro Disordered Attention – How We Look at Art and Performance Today, discute o problema da presença dos telemóveis dentro do museu. Traz-nos uma nova noção, “hybrid attention” para justificar a pretensão massiva de fotografar ou filmar as obras no interior do museu. Refere-o a partir da duração das performances, por exemplo de Anne Imhof na Bienal de Veneza. Na sua perspectiva a duração e os movimentos lentos, quase estáticos, dos performers, são o que designa de instagramáveis. Quer dizer, na perspetiva do espectador, que é a que Bishop integra, a artista coloca os intervenientes nestas poses para poderem ser fotografados; mais, a duração que a artista introduz na obra facilita a “atenção híbrida” de que fala, ao tornar quase natural o gesto de abandonar a obra para se concentrar no telemóvel. Da perspectiva do artista (que, também, vi a performance na Bienal de Veneza e não fotografei nem filmei, por respeito à artista e à obra), esta é uma nova possibilidade que se afirma problemática. O capitalismo na sua formulação camaleónica de tudo capturar, e nas dificuldades inerentes a um processo de fazer – a duração - que à partida se apresenta como antagónico da instantaneidade, conseguiu encontrar forma de infiltrar este resistir. De novo, através de um aliado improvável: o público das exposições. Bishop parte da sua própria experiência de fotografar ou filmar para, depois, trabalhar no que viu. Parece-me uma visão desajustada da realidade. Parte muito significativa, diria, quase absoluta, das imagens realizadas servem o propósito único e narcísico de receber os famosos likes depois da “partilha” realizada5. Esta é, contudo, uma formulação teórica pertinente e a acompanhar os seus desenvolvimentos com atenção.
Não por um qualquer acaso, mas pela importância da obra, também Peter Osborne no seu último livro, já de 2024, se refere à performance de Anne Imhof em Veneza para questionar a temporalidade contemporânea na sua relação íntima com a tecnologia. Diz o filósofo inglês: “If the contemporary is fundamentally a new temporal form, bringing together in disjunctive conjunction a multiplicity of temporalities that are forced into relations with one another as a result of the increased social dependencies of a globalizing capital, then it will be in the museum’s specific forms of mediation of these temporal economic relations that its contemporary character will lie”. Quer dizer, nas mediações existentes entre artistas e público, agora invadidas compulsivamente6 pela miniaturização tecnológica oferecida pelos telemóveis e toda a sua potência digital que se prolonga na disseminação oferecida pelas chamadas redes sociais.
Num texto sobejamente conhecido, intitulado “O que é o Contemporâneo”, o filósofo italiano Giorgio Agamben interroga-nos sobre esta nossa condição. Diz Agamben que para se ser verdadeiramente contemporâneo é necessária a consciência de estar simultaneamente dentro e fora desta noção épocal, quer dizer, não abdicar das várias camadas do tempo com que, enquanto humanos, necessitamos para viver, isto é, o passado, o presente e o futuro. E, contudo, o cerco montado pela linguagem algorítmica tenta cortar as possibilidades de saída do interior do seu presente perpétuo. Tenta criar uma espécie de esquizofrenia social, como já nos avisava Fredric Jameson no início dos anos noventa.
De forma cada vez mais visível.
A utilização do verbo ver não é aqui introduzida de forma inocente: a tecnologia digital e a sociedade que está a formar é profundamente imagética (ocularcêntrica). Os ecrãs encontram-se por todo o lado: desde o telemóvel no nosso bolso ou carteira até às montras; painéis publicitários, agora transformados em ecrãs e outros dispositivos visuais urbanos. Hoje, nas cidades que habitamos, somos confrontados diariamente com a violência lumínica de todos estes dispositivos, sempre apresentados como o último passo de uma ideia de futuro a contaminar o presente. A luz excessiva do presente parece ser a marca do nosso tempo. Veja-se, numa outra dimensão, a violência exercida sobre a natureza nos vários dispositivos de entretenimento existentes em parques7. Árvores e animais nocturnos a sofrer com a iluminação excessiva e absolutamente antinatural. Aliás, a iluminação agora introduzida nas nossas vias públicas, concebida a partir de pequenos leds, traz consigo uma outra novidade desagradável: as sombras projectadas pela natureza (as folhas das árvores, a título de exemplo), aparecem desnaturalizadas, como projecção algorítmica pixelizada. Voltemos, por isso, a Agamben e ao seu texto. Refere o autor italiano:8 “o contemporâneo é alguém que fixa o olhar no seu tempo, para perceber não as suas luzes, mas o seu escuro. Todos os tempos são, para quem experimenta a sua contemporaneidade, tempos obscuros. O contemporâneo é, precisamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando o aparo na treva do presente.” Quer dizer, juntemos a obscuridade contemporânea a uma deliberada obsolescência que, como tal, configura um relacionamento com o passado, através da sua própria inactualidade e teremos uma definição não deslumbrada da ideia contemporânea de presente. Podemos dizer, com Agamben: ser inactual é ser verdadeiramente contemporâneo. O inactual vive o presente de forma activa, faz com ele acto de presença. É, por isso, um ente (pres)ente, como afirmava o filósofo espanhol Garcia Bacca, a partir do seu exílio mexicano.
Uma outra realidade bem presente tem a ver com a parafernália de imagens hoje produzidas pelos dispositivos digitais, o flow9 de que fala Peter Osborne no seu último livro. Em texto anterior designei-as como para-imagens.
As estatísticas referem uma média de 100 milhões de imagens lançadas para a rede todos os dias, somente através da aplicação Instagram. Aos poucos, todas estas imagens se desfazem em código que nunca chega sequer a ter a possibilidade de se afirmar como imagem. É a sua absoluta canibalização. Ao banalizarem-se, banalizam, também, a realidade em que tentam desesperadamente sobreviver: assistimos, por exemplo, sem qualquer sobressalto, ao genocídio a acontecer em Gaza. É, para o capitalismo de comunicação, apenas mais uma imagem de uma sequência infindável entre uma outra que nos mostra gatos a fazerem as suas brincadeiras e ainda uma outra que nos fala da transferência milionária de um qualquer jogador de futebol ou estrela pop envolvida em algum escândalo politicamente incorrecto. As imagens chegaram, assim, a um ponto de saturação que torna problemática a relação que os artistas têm com a sua própria criação de imagens. Que possibilidades de sobreviver neste universo hiper-carregado de imagens? Como utilizar de forma crítica e não deslumbrada as ferramentas tecnológicas ao nosso dispor? Como olhar a última grande novidade, a Inteligência Artificial, a partir do interior do território da arte?
Estas são perguntas carregadas de dúvidas que, os artistas terão evidentes dificuldades em responder.10 Nem sequer necessitam de o fazer. As obras que criam aí estarão para que sejam lidas segundo estas perspectivas.
Analisemos, por isso, no sentido, não de uma resposta unívoca às perguntas realizadas, antes, como possibilidades em aberto para desenvolvimento de trabalho debaixo destas condições completamente adversas, algumas obras e experiências a serem realizadas na actualidade por artistas e que, acima de tudo, nos colocam a hipótese de reflectir sobre o assunto, pois respostas não existem. Pelo menos no campo aberto da prática artística contemporânea. Apenas ressonâncias.
Como sabemos, desde há muito que as práticas, ditas disciplinares, entraram em crise e foram substituídas por uma mais aberta e ampla forma de trabalhar. Aquilo que há já alguns anos ficou conhecido, depois de um excelente ensaio de Rosalind Krauss11, como pós-medium12. A grande inovação que esta noção trazia era o reconhecimento do falhanço da hipotética ligação intrínseca do medium ao suporte. A hipótese levantada pela teórica americana a partir da obra de Marcel Broodthaers era exactamente a oposta: no caso do artista belga nenhum suporte (como, por exemplo, a tela no caso de um pintor), podia ser atribuído como comum aos seus trabalhos. Bem pelo contrário. E, contudo, existia um medium que se tornava incontornável ao longo de todas as suas obras: a ficção. Uma alteração, portanto, absolutamente radical. Neste caso o medium não se encontra ligado a nenhum suporte. É, antes, de ordem conceptual, aquilo que Krauss designa como especificidade diferencial.
Esta constatação importante, e no caso do texto referido, a partir da obra de um artista, apenas vem confirmar o que já era e é absolutamente normal na prática artística: as possibilidades de trabalho para os artistas abriram-se a todas as possibilidades interventivas: do corpo à tecnologia mais complexa. É nesse espírito que me interessa aqui falar da obra de duas artistas, compositoras, portanto ligadas prioritariamente ao som, e que produzem um trabalho que oferece leituras importantes para este texto. Falo da compositora americana, radicada na Suécia, Kali Malone e da canadiana Sarah Davachi. Ambas possuem formação académica em música electro-acústica, na exploração de variados sistemas de tuning (afinação), bem como no desenvolvimento de sistemas generativos e tecnológicos de composição. E, apesar deste background, ambas têm explorado instrumentos que não se consideram contemporâneos: o órgão de tubos e a voz. No caso de Malone, ainda, a especificidade da polifonia de vozes.
Se escutarmos álbuns13 de cada uma das compositoras veremos que em paralelo com estes instrumentos existem composições para sintetizadores modulares e que o relacionamento entre ambas as vertentes, é absolutamente pacífico. O que parece sobressair de forma clara é que neste como no geral das práticas artísticas, não é, nunca foi, a tecnologia que produz os resultados, mas os artistas que os impõem à tecnologia. Vejamos mais em detalhe estes dois casos. Tanto Kali Malone como Sarah Davachi usam o órgão de tubos pelas qualidades sonoras que este permite. Acima de tudo, o prolongamento dos sons para tempos alongados. Por outro lado, os seus métodos de composição baseados na “just intonation”, são absolutamente contemporâneos. Este método, ainda que tenha sido utilizado por músicos não ocidentais há já largos tempos, foi intensamente experimentado e usado a partir do minimalismo. Com o aparecimento da tecnologia electrónica e, depois, digital o aprofundamento deste processo é ainda mais alargado. A aparente obsolescência da utilização de um instrumento tão datado como o órgão de tubos torna-se, assim, absolutamente contemporânea. Lembremos a noção de contemporâneo de Agamben e, nestes casos, estamos perante dois exemplos que são bem explícitos do que afirma.
É, por isso, natural que o último álbum de Kali Malone14, abra com uma composição para uma polifonia de vozes, exactamente com palavras de Agamben15. As palavras do autor italiano pertencem a um outro livro intitulado “Profanações”. Neste, o autor defende que é fácil profanar o sagrado e trazer para o secular algo que foi apropriado pelo sagrado (palavras cantadas no disco). Contudo, termina com uma frase da maior importância: é impossível profanar o improfanável referindo-se, obviamente, a condição camaleónica do capitalismo que a tudo se adapta para perversamente obter lucro. Esta é uma frase a que o assunto deste texto não é exterior. A tecnologia e o digital é, talvez, um dos territórios mais massacrados por este posicionamento hegemónico. Lembremos que o aparecimento da Internet foi apresentado (ingenuamente) como um espaço de liberdade. Bastaria entender a etimologia da palavra cyber – então utilizada para caracterizar o virtual – para se entender com facilidade o que estava em causa: cyber tem a sua etimologia grega numa palavra cujo significado é controlo. Mais, os primeiros browsers tinham todos, e não acredito que seja, pura coincidência, nomes ligados à expansão colonial europeia (Internet Explorer, Netscape Navigator...).
Nos dois casos aqui apresentados o que é importante salientar é a relação que a música tem com a noção de duração. Talvez, como vimos, a última possibilidade resistente para a arte na sua recusa da instantaneidade maquínica. A duração é, pretensamente, o antagónico absoluto da instantaneidade.
Claire Bishop, apesar do que já foi discutido no início deste texto, introduz outros elementos importantes relativamente a esta noção. Afirma a autora ser a duração introduzida na performance uma das possibilidades resistentes numa arte que se confronta, agora, também, com a Inteligência Artificial. A performance enquanto prática do corpo, liberto do fechamento tecnológico16.
Em plena pandemia o artista norte irlandês Willie Doherty17 produziu um vídeo para ser visionado apenas pela Internet (dadas as condições daquele momento histórico, nenhuma outra possibilidade existia então). O que mais sobressai, para lá do seu inactual preto e branco (a utilização do P/B num tempo que potencia os milhões de cores é uma atitude do artista que o afasta de uma pseudorrealidade colorida. Esta desrealização liberta-o para a ficção e para a obra que nos oferece) é a sua duração, num ambiente que é hostil a qualquer tempo alongado.
A duração, bem como a opção pelo inactual, na sua relação com o tempo e com o fazer da própria imagem proporcionam as possibilidades mais visíveis de ultrapassar a contingência da hegemonia tecnológica.
A artista Susana Soares Pinto, a viver e a trabalhar em Londres, utiliza nos seus trabalhos mais recentes técnicas de pintura que datam dos tempos medievais. Alheias a toda a industrialização dos materiais, as obras, essas, afirmam uma relação estreita com algumas das problemáticas mais contemporâneas, nomeadamente, a ameaça que paira sobre a natureza devido ao elevado nível de extractivismo. Uma vez mais, o que podemos ver nas obras desta artista é uma lucidez crítica que é exterior a qualquer retórica. São os próprios materiais e processos do seu fazer saber que a conduzem aos resultados que pretende, isto é, um questionamento continuado das estratégias de dominação alimentadas por todas as formas de extractivismo, desde os mais antigos e tradicionais, como o carvão aos mais recentes, como os dados e a tecnologia. Em todos eles os resultados são sempre idênticos: mais e mais poluição, mais e mais exploração; mais e mais lucro. Autofagia, desmesura e autodestruição.
A profanação de que fala Agamben é, também, a palavra mais interessante para classificar o conjunto de obras do artista espanhol Xoán-Xil López vencedor de um prémio numa das últimas Ars Electronica em Linz, na Áustria, com uma espécie de esculturas arcaicas que produzem sons de pássaros. Ora, este é um acontecimento importante, já que a Ars Electronica é o evento mais impactante da chamada arte tecnológica, E, assim sendo ganha maior dimensão a atribuição do prémio a algo aparentemente alienígena no universo das máquinas up to date que por lá se encontram...e, porque não, também, lucidez.
Analisámos apenas duas das hipóteses possíveis do relacionamento da arte com a tecnologia: a duração e a obsolescência. Aquelas mais directamente ligadas à noção problemática de contemporâneo, hoje, quase que confundida com a de digital. Muitas outras possibilidades existem. De uma forma ou de outra a arte sempre teve de se adaptar, criticamente, a novas inovações tecnológicas. Só para lembrar as mais recentes: a fotografia, o cinema, o vídeo e, finalmente, agora, o digital.
O que diferencia fundamentalmente esta nova condição é o pan sistema que organizou em torno de si. O cerco é total, a colonização é absoluta: da fotografia, ao cinema, ao vídeo, ao som, tudo foi sendo cercado e, neste momento, todas estas tecnologias funcionam em forma unicamente digital (com as devidas excepções que não são, claro, a regra). É uma situação que coloca os procedimentos artísticos mais tecnológicos numa nova e inédita situação: a arte utiliza os mesmos meios técnicos (a programação algorítmica) da indústria, do sistema financeiro, etc. Para a arte, trata-se de um fechamento absolutamente oposto à sua dimensão experimental. Daí o desafio que lhe é colocado: como habitar endogenamente este território e, simultaneamente, poder ser-lhe exterior, uma espécie de inexterioridade18. As estratégias utilizadas pelos artistas já nos estão a provar da possibilidade de uma arte que convive com a nova dimensão tecnológica em forma de desafio conceptual.
Um último exemplo. Dizia o realizador húngaro Bela Tarr que o grande estímulo no cinema analógico, com os seus dispositivos de filmagem de grandes dimensões, era fazer travellings e panorâmicas, ou acompanhar personagens de câmara ao ombro. Hoje, com a miniaturização e digitalização de imagens vistas em tempo real, o grande desafio é conseguir resistir ao ímpeto de o fazer e deixar-se ficar por uma planificação com planos fixos.
Que melhor metáfora para a situação que temos pela frente. Que melhor forma de descrever a possibilidade de utilização crítica da tecnologia.
Talvez uma das tarefas mais necessárias neste tempo sem tempo contemporâneo (moderno) seja ter a coragem de desmodernizar, como afirma a teórica mexicana Irmgard Hemmelainz19, quer dizer, voltar a um tempo humano que afaste a desrealização das temporalidades maquínicas (essencialmente digitais) fascinadas com a instantaneidade reinante e anestesiadora. Voltar a um tempo que se materialize.
Escrevi há muitos anos que a utopia da arte se opunha à aporia do digital20. Não me arrependo do que escrevi e acredito, hoje é mais válido que na altura, isto é, no final dos anos 1990.
Não me dou bem com o optimismo deslumbrado. Resistente sei que sou. Talvez seja optimista.

Fernando José Pereira

1 Couldry, Nick; Mejías, Ulises: The costs of connection: How Data is Colonizing Human Life and Appropriating It for Capitalism, Stanford University, 2019
2 Este texto posiciona-se num território, uma espécie de heterotopia, exterior à anestesia. No início deste século, desenvolvi uma noção que, ainda hoje, me parece importante: a desanestesia. Duchamp falava das suas obras como anestesiadas de gosto. Os tempos, contudo, mudaram. Hoje necessitamos de outra formulação: a desanestesia parte da etimologia da palavra anestesia, ligada originalmente na Grécia antiga à negação da beleza. No séc. XIX ganhou outra significação que ficou até hoje: a negação da dor. A desanestesia institui-se através de desocultação da beleza como possibilidade para a desocultação da dor.
3 JAPPE; Anselm. A Sociedade Autofágica, Capitalismo, Desmesura e Autodestruição, Antígona, Lisboa, 2019
4 A este nível, lembrar a atitude do realizador Apichatpong Weerasethakul que, no seu último filme, Memória, tirou partido de uma possibilidade sonora: as muito baixas frequências (talvez as intérpretes principais do filme), apenas audíveis em bons sistemas de som, com a intenção de potenciar a ida ao cinema, para podermos fruir o filme como comunidade. E o mais importante é que esta impossibilidade de o filme ser visto correctamente fora das salas, não é uma qualquer hipótese retórica ultrapassável, é uma consequência de uma decisão intimamente ligada ao fazer do próprio cinema: a utilização do som como factor determinante na sua relação com as imagens. Um acto artístico, portanto.
5 Para mais detalhes sobre esta última questão ver o meu texto no livro Welcome to Paradise, de Luís Ribeiro.
6 Lembramo-nos, evidentemente, da noção de Yanis Varoufakis “tecnofeudalismo”, onde descreve as mudanças operadas no capitalismo global no sentido de este se transformar num sistema que concentra em si todo o poder através do controlo das tecnologias digitais por uma pequena minoria, uma elite.
7 Um caso que provoca perplexidade é o exemplo da iniciativa anual a decorrer no verão dentro do Museu de Serralves.
8 AGAMBEN, Giorgio: Nudez, 2009, Relógio d’água, Lisboa.
9 “There is a clear disjuntion between the temporal forms of the old idea of the photograph and that of digitalized photographic image production. In particular, the seemingly naturalized flow of digitalized data and images, participation in which has become a condition of so many social relations, create a difficulty and mutability of the image that produces an accelerating and self-forgetting temporality…The photograph’s existential proximity to the world – its indexicality – is thus increasingly registered less in the content of the image than in the often rapidly image-obliterating act of exchange”. OSBORNE; Peter, Crisis as Form, Verso Books, London, 2024
10 Numa espécie de livro de despedida o teórico Benjamin H.D. Buchloh conversa com Hal Foster. A determinada altura refere: “To my mind emulating the regime of domination in the most precise way is a necessary strategy for a work of art. It’s only one operation among many, but it’s a significant one. Take Conceptualism. In the guise of anti-aesthetics, its stripping of all forms of administration. We’ve yet to see an analogous movement that would take a similar approach to advanced forms of digital culture today – that would tell us, for example, about the impossibility of grasping anything tactile in that culture.” Buchloh, Benjamin H.D; Foster, Hal. Exit Interview, no place press, Massachusetts, 2024
11A Voyage on the North Sea: Art in the Age of the Post-Medium Condition,Thames & Hudson, London, 2000
12 Provoca grandes interrogações o porquê de um retorno a uma condição medial especifica no âmbito épocal da condição pós-medium, agora introduzida com a chamada arte digital. E, ainda, acentuada por outra formulação teórica caduca, como a de novo. A assim designada arte digital aparece sempre ligada à designação novos media.
13 A título de exemplo, de Kali Malone, o álbum Does Spring Hide Its Joy, Ideologic Organ, 2023. De Sarah Davachi, o álbum Long Gradus, Late Music, 2023. Nenhum destes é o último.
14 Kali Malone, All life long, Ideological Organ, 2024
15 É referido a este propósito na página Bandcamp do disco da artista: “Agamben defines profanation as, in part, the act of bringing back to communal, secular use that which has been segregated to the realm of the sacred, a process Malone enacts each time she performs on church organs.”
16 A IA, apesar da sua extrema velocidade, encontra-se presa no interior do universo fechado do virtual. Não pode, por isso, ter ideia de algo menos liso e frio. Ao contrário das pessoas e das suas incontornáveis, e tão importantes, fragilidades sensíveis.
18 Noção minha a partir do conceito de extimidade de Jacques Lacan
19 Pereira, F. J. (Ed.) (2020). Irmgard Emmelhainz. A arte útil e as indústrias culturais. Lado B - Cadernos DAP, (2). i2ADS/DAP.
20 A frase é a base do título da Tese de Doutoramento que terminei em 2001. Este é o seu título “Arte Contemporânea, a utopia de uma existência exilada. Os desenvolvimentos numéricos como nova (im)possibilidade aporética”.
BIOGRAFIA
Fernando José Pereira (Porto) é artista e investigador do Instituto de Investigação em Arte e Design (Universidade do Porto) e do Grupo de Estética e Teoria das Artes da Faculdade de Filosofia (Universidade de Salamanca). Tem obras em várias coleções públicas e privadas: Fundação de Serralves, Instituto de Arte Contemporânea, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Galego de Arte Contemporânea (Santiago de Compostela), Museu da Cidade de Lisboa, Coleção PLMJ, Fundação Ilídio Pinho, Universidade do Porto, Coleção da Câmara Municipal do Porto, Coleção de Arte Contemporânea do Estado. Membro do coletivo Virose. Membro do projeto Haarvöl.
Anterior
interview
capa do mês
13 Mai 2025
Entrevista com Annet Dekker - Cluster Arte, Museus e Culturas Digitais
Por José Pardal Pina
Próximo
interview
capa do mês
27 Mai 2025
Trazer o som para o presente: uma entrevista com o NOW Collective
Por Josseline Black
PROJETO PATROCINADO POR