De forma a encontrar a radicalidade partilhada, três projectos — AiR 351, PADA Studios e pó de vir a ser — pertencentes à Rede Portuguesa de Arte Contemporânea, encetam um diálogo sobre a energia dedicada à manutenção da sua própria existência, tendo em consideração a sua condição periférica. É importante sublinhar que estas são estruturas que não competem com os museus ou com o tecido galerístico, nem pretendem disputar o cenário artístico independente ou substituir espaços informais ou geridos por artistas. As suas intenções, forças e missões remetem para o quotidiano do trabalho artístico e para a construção paciente de espaços de investigação artística, que pode ser entendida como o que alicerça o tecido cultural. São muitas vezes estes projectos que revelam o trabalho invisível que permite processos de desenvolvimento e que não reclamam para si a força das imagens e da sua respectiva apresentação. São amantes do percurso, da descoberta acompanhada e da proximidade. Apesar da sua importância e do reconhecimento da capacidade de criar comunidade, de sustentar práticas e de oferecer aos artistas um lugar de atenção e partilha, são estruturas frágeis, pela pequena dimensão das equipas e pela intermitência dos apoios que as permitem. Se quisermos convocar uma metáfora orgânica, diríamos que a RPAC constitui o esqueleto e estas estruturas a sua carne, vísceras e órgãos: o que faz do corpo cultural um corpo vivo. É neste corpo que se cumpre, discretamente, um princípio constitucional tantas vezes esquecido: o direito de todos à fruição e à criação cultural. E aqui se impõe uma importantíssima reflexão: quando o acesso à cultura depende de estruturas frágeis, sustentadas por equipas reduzidas e pela dedicação quase sacrificial dos seus membros, não estaremos perante uma contradição? A de que o nosso direito vive da resistência deles. Sustentabilidade torna-se assim uma prática quotidiana de sobrevivência e não mais uma categoria ou tema.
Os encontros promovidos pelo 3 Projetos X 3 Encontros - que reúne estas três estruturas, em três encontros, para que se partilhem e discutam ansiedades e entusiasmos - trouxeram-no à superfície. Mais do que um alinhamento temático, aquilo que emergiu dos momentos de diálogo relaxado e emocionado foi a consciência de que estas entidades vivem num estado permanente de precariedade. Paradoxalmente ou não, dado que a precariedade se apresenta como condição inicial à sua existência, é também ela que estrutura a sua energia criativa. É em torno dela que as soluções e respostas se constroem.
O problema não é individual, mas estrutural: enquanto se ocupam com candidaturas, relatórios e prazos, adiando para o futuro a possibilidade de viver o presente das pequenas conquistas e prazeres, o ecossistema cultural perde energia vital. Se é a burocracia que permite assegurar a manutenção mínima, é também ela que drena a força transformadora. Sustentar significa o rapto de tempo e energia da invenção em prol da continuidade dos projetos e da manutenção da sua vitalidade.
Para pensar a complexa tessitura de paradoxos, recorro a uma metáfora desportiva. O basquetebol 3x3, nascido nos campos de rua, joga-se a partir de condições pré-estabelecidas embora improvisadas. As equipas formam-se casualmente, a rotação é rápida, e a alegria acontece fruto dessa prevista imprevisibilidade. Competindo-se, o que está em causa não é a vitória. O que se celebra é o prazer de jogar dentro do jogo. Também assim funcionam estas estruturas: improvisando regras, formando alianças improváveis, persistindo em campos que não foram desenhados para si. Competem inevitavelmente por apoios e recursos, mas é no estabelecimento da rede e do encontro que descobrem a possibilidade de se aplaudirem mutuamente. O amor à camisola, expressão banalizada e capitalizadora do entusiasmo, significa aqui alimentar a causa comum de manter vivo um ecossistema artístico sob condições adversas.
O desejo e necessidade de partilhar experiências e fragilidades aponta outras dimensões, como a importância destas estruturas como espaços de invenção social. A criação artística encontra-se com a criação de modos de vida; é no partilhar alojamentos, no cozinhar em conjunto e no improvisar de equipamentos que se redefinem continuamente os limites do possível. Mais do que oferecer estúdios ou ferramentas, estas estruturas permitem a pertença a uma comunidade em que o ato de criar se confunde, assumidamente, com o ato de viver. Neste seguimento, sustentabilidade ganha contornos ainda mais alargados; não se refere apenas à capacidade de viver, mas à criação contínua dessa mesma vivência, a criação contínua das condições de uma existência comunal, de convivência.
No prazer doloroso da vivência, o risco da sobrecarga emocional e material dos que mantêm estas estruturas vivas está continuamente latente. A dedicação é virtude e armadilha. A vitalidade que se gera da precariedade pode rapidamente traduzir-se em exaustão. A reflexão deve ser incisiva: até que ponto se pode exigir de pequenas equipas a manutenção de um direito que é coletivo e constitucional? Até que ponto a retórica do entusiasmo dissimula a necessidade de assegurar as condições basilares de manutenção deste direito constitucional?
O que se testemunha no terreno — a rede que já lá estava e que a RPAC formaliza e torna visível — é a luta face à dificuldade em garantir continuidade. A longevidade constrói-se, certamente, fruto da vontade, mas apenas se forem alocados os meios necessários.
Apesar de tudo isto, dito e partilhado, persistem.
Persistem porque a prática artística, mesmo em condições adversas, contém uma força de invenção que não se esgota. Persistem porque, no encontro, se desvelam tanto as dificuldades concretas, como a capacidade de celebrar conquistas. Persistem porque, mesmo exaustas, estas estruturas continuam a gerar contextos em que artistas podem experimentar, falhar, reinventar-se. Persistem porque o prazer continua a atravessar tudo o que se faz. O prazer não é antagónico à seriedade: é, pelo contrário, aquilo que mantém a chama acesa quando os recursos se esgotam.
O primeiro de 3 encontros deste projeto conjunto não permite conclusões, mas abre espaço para que a compreensão partilhada da palavra sustentabilidade seja revista. É necessário que sustentar seja entendido como manter vivo um ecossistema artístico e humano que insiste em continuar a criar, mesmo face a condições desfavoráveis. É necessário que signifique reivindicar condições favoráveis para que seja possível imaginar um futuro comum, como espaço de invenção coletiva.
Nos textos que a este se seguirão será inevitável prolongar estas reflexões, debatendo a relação entre residências artísticas e educação informal e a inscrição destes projetos nos territórios que habitam. Por agora, fica a imagem do jogo: três estruturas que, como três equipas num mesmo campo improvisado, se encontram, competem e se aplaudem. E descobrem na sua vulnerabilidade uma energia vital.
Talvez esta analogia nos permita ler sustentabilidade não como a garantia do futuro estável que devemos continuar a reivindicar, mas como a capacidade de reinventar as condições de possibilidade do próprio jogo. E assim, permitir o prazer do corpo cultural.