“Abençoado é aquele que não possui casa; vê-a ainda nos seus sonhos” [1], escreveu Hannah Arendt numa das páginas do seu fascinante diário de pensamentos. Com frequência, “casa” e “lar” aparecem como sinónimos dentro da representação ocidental de segurança, estabilidade e conforto. Atrelada à ideia de propriedade, a rede especulativa que permite que nos sintamos em casa captura, até, o conceito de “mundo” – não esqueçamos do pensamento de Blaise Pascal: “Meu lugar ao sol. Eis o começo e a imagem da usurpação de toda a terra” [2]. Fincada como parte constitutiva do humano, cuja essência ontológica parece vincular-se quase sempre a um território (do qual se nasce, o qual se ocupa, ao qual se retorna), a casa ganha, assim, uma presença praticamente imperceptível e inquestionável nas nossas vidas. Contudo, porque nada é tão certo que a arte – e a filosofia – não possa contestar, é a própria casa que será interrogada em HOUSEWARMING, exposição que nos convida a conhecer a nova morada da MONITOR em Lisboa.
Olá, boa tarde, boas-vindas, não fiques à vontade! Ao percorreres as diversas obras reunidas nesta coletiva, verás que o sentido do habitar está fadado a fragmentar-se. Perderás o chão, é verdade – no piso de baixo, um tapete vermelho confere à sala um tom muito mais cerimonial do que doméstico ou privado. Talvez esta seja a pergunta que atravessa grande parte dos trabalhos ali curados e que a própria mudança de localidade da galeria no bairro do Rato – mas originalmente, até, de Itália para Portugal – atestam: quais são os limites do terreno da intimidade? Onde se faz, de facto, a casa?
À entrada, um conjunto de peças cor-de-barro com a assinatura de Maja Escher já condensa uma série de inquietações acerca daquilo que se convencionou denominar uma “ciência da casa”. Na sua Horta (2020), ervilhas verdes secam num estendal de frágil equilíbrio, utensílios de jardinagem esculpidos à mão remetem-nos a um ambiente orgânico, como se fossem capazes de transformar aquele revestimento de pedra em grama fresca. A um só tempo, a artista parece lavrar e demolir a noção da terra enquanto lar: por um lado, é possível pressentir uma certa nostalgia originária, um elogio ao mito da autoctonia – reforçado, ainda, pela referência à identidade alentejana como cartaz de um Portugal tradicional ou primordial –; por outro, a escolha por símbolos e tecnologias típicas do espaço domesticado aponta para uma outra convicção ecológica, a de uma ecologia sem Natureza [3], sem holismos, sem a pretensão de pureza.
Em Maja, mas também nos graffitis esculturais do duo primeira desordem nas paredes vizinhas, as fronteiras moles entre o dentro e o fora, o pessoal e o público, amolecem-se ainda mais, artificiais que são. Pode a rua bater à porta e adaptar-se ao universo confidencial e protegido da casa. Pode, também, a casa alastrar-se para reinos tão distantes que engole a rua e passa a condicionar todos os animais, exceto o humano, à prisão domiciliar. Encontram-se, aqui, os primeiros ecos das preocupações de Emanuele Coccia, que nos chama a atenção para as armadilhas da imagem de Gaia como uma grande casa comunitária: “[…] [n]ão reconhecemos o direito de outros seres vivos de sair de casa, de viver fora de casa, de ter uma vida política, social e não doméstica. […] Estão todos em quarentena durante sua vida natural” [4].
Importa assinalar, como é claro, que nem todos os humanos partilham desse mesmo privilégio à arena pública, à cidade. A casa é, também, para incontáveis mulheres, o lugar para o qual o pudor empurrou todos os seus constrangimentos, o destino comum para o qual caminham as debutantes em fila (Le debutant, 2023, Eugénia Mussa): como exprimem as telas redondas de Francisca Sousa (Sleep is my lover, Esperma e Contra-sexual, 2022), do prazer à violência doméstica, tudo é permitido entre quatro paredes. Um teto também não é o suficiente para o cineasta e artista visual holandês Guido van der Werve, que continua o motivo da circularidade ao filmar-se a correr em volta da sua casa ao longo de uma volta completa no relógio. No seu caso, é a depressão que coloca grades nas janelas, e que reduz qualquer lar a um refúgio árido e vazio, quase inabitável.
Afinal, para citar Coccia mais uma vez, a casa enquanto concha, enquanto idealização arquitetónica ou espaço puro, “é uma abstração, algo que não existe. Nós nunca encontramos espaço. Habitamos o mundo que é sempre povoado por outros seres humanos, plantas, animais, os objetos mais díspares. Esses objetos não ocupam espaço, eles o abrem, possibilitam o espaço […]” [5]. Não mais bem imobiliário, sede administrativa ou cela solitária, a casa pode ser este lugar onde coisas – animadas e inanimadas – descobrem o seu poder recíproco de toque, ação, movimento. Um corpo deforma ângulos retos (Tröder (thirst traps), 2022, Tomaso De Luca), limões disfarçam-se de bolas de ténis (Lemons, 2023, Astrid Sonne), meias rebelam-se contra a relação monogâmica com os pés (Things are always full of people, 2011, Astrid Sonne). “Este é o ponto de partida da revolução doméstica” [6].
Quiçá seja mesmo preciso pedir ao elefante na sala para se retirar e convidar o estranho, o diferente, para entrar. E que tal seria se deixássemos de pensar o íntimo como uma experiência de proximidade previsível, segura e aconchegante? Se a nossa metáfora para a relação entre os seres na Terra fosse menos a de uma vizinhança e mais a de um carnaval vibrante e político (Fête Cosmique, 2023, Daniel V. Melim)? A circulação é livre – por favor, não te sintas em casa! Vai buscá-la nos sonhos.
HOUSEWARMING está patente na galeria MONITOR, em Lisboa, até dia 29 de julho.
[1] Arendt como citada em Hill, Samantha. (2015). Home, Homelessness, and The Human Condition, artigo online. “Blessed is he who has no home; he sees it still in his dreams”. Tradução livre.
[2] Pascal como citado em Levinas, Emmanuel. (2004) Entre nós: ensaios sobre a alteridade. (Pergentino Stefano Pivatto, et. al, Trans.). Editora Vozes, p. 296. Ênfase adicionada.
[3] Morton, Timothy. (2010). The Ecological Thought. Harvard University Press, p. 12.
[4] Coccia, Emanuele. (2020). Revertendo o novo monasticismo global. (Mariana Silva da Silva, Trans.). Disponível em <http://grupoflume.com.br/wp-content/uploads/2020/04/Coccia_Monastico.pdf>.
[5] Id. Ibid, ênfases adicionadas.
[6] Id. Ibid.