Um espaço geográfico não se define por fronteiras visíveis, mas por linhas que se insinuam cuja origem e fim, embora localizáveis, nem sempre são compreensíveis. Tais linhas não delimitam sistemas homogéneos; antes, fragmentam múltiplos sistemas gerando desequilíbrios. Seguem direções distintas, interferem entre si e compõem agenciamentos instáveis. Os objetos visíveis, as forças em exercício, os sujeitos numa determinada posição surgem, à maneira de Deleuze, como vetores ou tensores. Nesse sentido, os constituintes de um espaço e o próprio espaço não possuem contornos definitivos: são antes cadeias de variáveis relacionadas entre si. Se um corpo exige um espaço, então todos os corpos solicitam uma geografia interdependente e, por isso, contingente. Espaço e corpo são, assim, mutuamente permeáveis. Nenhum escapa à inscrição do outro.
Mas o que significa habitar um espaço? Será apenas ocupar um lugar, ou há algo que simultaneamente nos ocupa também? E quando habitamos, seremos apenas presença ou também nos tornamos parte da própria estrutura do lugar? Na obra Fenomenologia da Perceção, Merleau-Ponty afirma que não estamos no tempo ou no espaço — somos tempo, somos espaço. Esta afirmação desloca-nos de uma visão meramente operativa do verbo estar. Já não se trata apenas de ocupar algo, de um simples estar-em, de uma presença localizada, mas de uma ontologia do espaço: sou um ser que se constitui no e pelo espaço que habita. Não há exterioridade, há coimplicação, inscrição, enraizamento.
É nesse limiar entre o dentro e o fora, entre o movimento e a permanência, que se inscreve a mais recente exposição de Hélder Folgado, Coisa Comum. Aqui, o gesto de habitar não se manifesta como descrição, mas como inquietação e impõe uma pergunta, talvez mais sentida do que formulada: como ocupo o espaço que me ocupa e que, simultaneamente, ocupa e aloja tantos outros?
Deparamo-nos com esta tensão logo no início da exposição, quando confrontados com uma imagem que nos é familiar: o jogo do mais forte e a luta pela resposta mais eficaz às necessidades elementares. Trata-se de um vídeo em loop que capta a pulsão social, neste caso, de um bando de pombos que se movimenta no espaço. Contudo, só há movimento se houver espaço e quando o espaço é reduzido os corpos ajustam-se, comprimem-se, limitam-se ao que lhes é possível. A imagem que surge é babélica, quase claustrofóbica: todos os corpos alados competem por um lugar. Estes cruzam-se, empurram-se e atropelam-se. São presença e limite.
No centro – que só se revela pelas extremidades que o delimitam – encontram-se dezoito chapas de chumbo laminadas. Sóbrias e discretas, estas assemelham-se a abas metálicas que, mais do que assentar no chão, o trespassam. A sua estrutura não se ancora em nenhum suporte visível, mas tal ausência não se traduz em instabilidade ou vulnerabilidade. A sua densidade parece bastar. Contudo, a opacidade própria do chumbo desemboca na leveza do inox, que, quase invisível, reflete o pavimento. Esta solução formal obriga o espectador a baixar-se, a alterar o seu ponto de vista e a aproximar-se daquilo que o sustenta. Com variações dimensionais e espaciais, as chapas instauram um eixo visual curvo e indiciam um caminho. A sua presença implica uma praxis, uma escolha: é necessário interceptar uma das suas margens para nos aproximarmos das duas obras que restam. Interromper, contornar ou arriscar é, assim, inevitável.
Na parede que assinala o fim do percurso encontramos uma delicada composição de penas de pombo, embebidas em cera de abelha e organizadas com uma precisão que parece evocar um voo coletivo. Se no início da exposição o corpo dos pombos se impunha com desordem, chegado este momento a sua presença é sugerida por ausência: não os vemos, mas adivinhamo-los. O seu voo está suspenso.
Assim, entre o que é arquivo, ou memória, e atual, ou presença, conta-se a história de um lugar. E talvez esta coisa a que chamamos comum seja precisamente o espaço no qual se dá a história, aquilo que está entre nós, esta matéria sensível que nos aproxima. Porém, mais do que uma narrativa, aquilo que verdadeiramente ressoa é o binómio corpo-espaço: corpos em espaços, espaços em corpos. E é justamente neste ponto que o trabalho de Hélder Folgado se inscreve: dar a pensar o espaço não como dado, mas como tarefa.
Coisa Comum, de Hélder Folgado, está patente no Sismógrafo, no Porto, até 24 de maio.