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The Mouth of Krishna de Albarrán Cabrera na Galeria In The Pink
DATA
27 Nov 2023
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AUTOR
Ana Isabel Soares
Para a Europa, o exotismo (oriental) é lugar de uma abrangência tão mais total quanto mais incompreendida. Procurar domá-la, na figura dessa “boca de Krishna”, parece ser um dos ímpetos que dirigem a pulsão criativa da dupla catalã Albarrán Cabrera, cujo trabalho se mostra pela primeira vez a solo em Portugal.

Em Heart of Darkness, obra-prima literária criada por Josef Conrad a partir de uma das inúmeras viagens para fora da sua Europa natal, o narrador protagonista – Marlow – descreve assim a primeira ocasião em que, à distância, avistou o misterioso Kurtz: “Vi-o abrir muito a boca assumiu um estranho aspecto voraz, como se quisesse engolir o ar inteiro, a terra toda, todos os homens à frente dele. Débil, chegou até mim uma voz profunda. Ele devia estar a gritar.” Kurtz é uma das mais decisivas personagens da literatura ocidental: um explorador e mercador europeu que se embrenhou na selva africana e, profundamente mudado por ela, se transforma num poder centrípeto, numa energia impossível de deter e de entender na sua totalidade e, por isso mesmo, quase sempre representada por Marlow (que viaja na direção geográfica e mental de Kurtz) como parcelas: uma voz, um membro, a silhueta, a cabeça, o olhar. A razão pela qual Marlow sente dificuldade em descrever Kurtz, ou em falar sobre ele, é essa impossibilidade de fazer conter em palavras a totalidade daquele homem transformado por um mundo que o europeu desconhece, por demasiado distante e diferente de si. Marlow é um Krishna moderno (a novela de Conrad é do último ano do século XIX), a ideia de uma voracidade que abarca o universo.

Assim é Krishna, a divindade hindu que, em criança, tendo metido à boca um punhado de terra, quando a abriu revelou um universo. O mito narra que o pequeno Krishna, guardador de vacas, naquele momento era a encarnação de Vishnu, Deus de indisputada soberania, que deu a ver à mãe da criança “a totalidade do universo eterno, os céus e as regiões do firmamento, a órbita da terra e as suas montanhas, ilhas e oceanos”, o “vento, relâmpagos, a lua e as estrelas, e o zodíaco; a água e o fogo e o ar e o próprio espaço”, os “trémulos sentidos, o pensamento, os elementos e as três qualidades da matéria” – viu todo o universo na sua imensa variedade, “com todas as formas da vida e da natureza e da ação e da esperança, viu a sua aldeia e a si mesma se viu” [1].

Para a Europa, o exotismo (oriental) é lugar de uma abrangência tão mais total quanto mais incompreendida. Procurar domá-la, na figura dessa “boca de Krishna”, parece ser um dos ímpetos que dirigem a pulsão criativa da dupla catalã Albarrán Cabrera, fusão artística de Anna Cabrera (n. 1969) e Ángel Albarrán (n. 1969), cujo trabalho conjunto vem desde 1996 e que se mostram pela primeira vez a solo em Portugal. A In The Pink, galeria de arte fotográfica em Loulé que tem afirmado como a mais relevante galeria de fotografia a Sul do país, exibe agora estas imagens dos fotógrafos catalães. The Mouth of Krishna aponta para a sedução do exótico, em peças que colocam em tensão estética a sombra e luz, o visível e o invisível, a ilusão e a realidade; num certo sentido, procurando abarcar aquela totalidade revelada no gesto da criança Krishna – ou do disfarce da magna divindade – perante a mãe.

Uma boca é um rasgão no rosto, entrada do corpo, espaço de um vazio, um limiar a transpor ou, fechada, a impedir a transposição. Como pode a fotografia figurar, ou, no pelo menos, sugerir, a amplitude do que uma divina boca engole e contém? No texto de apresentação de Albarrán Cabrera, o duo entende que a arte fotográfica, enquanto técnica, é um meio limitado. Concentram-se, pois, em criar a partir da indagação sobre tais limites e sobre as potencialidades desse mesmo processo de questionamento. Logo, se, por exemplo, as técnicas de impressão que têm ao dispor se revelam insuficientes para veicular as ideias que pretendem, “inventam novas técnicas e processos”, ou dedicam-se a experimentar diferentes modos “a partir de técnicas já existentes”, assim expandindo a “sintaxe fotográfica”. É nesse sentido de experimentação que apresentam o conjunto de fotografias expostas nos dois andares principais da galeria In the Pink, em Loulé, até ao próximo dia 16 de dezembro. Cada uma das peças – são fotografias, sim, mas vão além da mera captação de uma qualquer realidade que lhes pré-exista – é uma sugestão de um pouco do universo abarcável e visível a partir de um limiar divino. Em cada uma delas exploram-se texturas, brilhos, entre outras iridescências que remetem a essa ideia de magnífica e gigantesca divindade.

Poderia pensar-se que esta tentativa de captação de uma universalidade teria de ser apresentada através de dimensões fotográficas igualmente desmesuradas – não foi essa, no entanto, a opção de Albarrán Cabrera, que privilegiam o pequeno formato, talvez para remeter ao jogo da narrativa mítica, que faz representar o imenso Vishnu através de uma criança – afinal, é Krishna que dá título à mostra. Ou porventura para lembrar que o Universo inteiro cabe num grão de areia.

As imagens, datadas entre 2018 e 2020, surgem numeradas, sem outro título senão o da exposição; tal como essa designação global, a materialidade que constitui cada uma, e as técnicas utilizadas sublinham o elemento exótico, não ocidental: recorre-se a pigmentos e a folha de ouro sobre papel japonês. É desta combinação da textura do papel japonês e do ouro que sobre ele é aplicado que deriva uma das mais poderosas impressões que a exposição deixa em quem a visita: a luminescência das imagens. Quase todas são igualmente fabricadas através da sobreposição de camadas de papel (fotográfico, ou impresso com imagens de cores de uniformizadas a predominantes), num labor de quase rendilhado que aponta à ideia de chinoiserie: o exótico permanece, convidando a uma atenta e demorada observação de pormenores, a silenciosos, quase introspetivos exercícios de atenção próximos da prática meditativa – não necessariamente a culminar numa elevação ou anulação do pensamento, mas, na repetida remissão ao mito do título, incitando a visitante à construção de narrativas, ao entrever de cada um dos elementos que compõem, afinal, o infinito.

The Mouth of Krishna [A Boca de Krishna], de Albarrán Cabrera, está patente na Galeria In The Pink – Fine Photo Art, em Loulé, até 16 dezembro de 2023.

 

[1] De Bhāgavata Purāṇa 10.8.21-45, ed. e traduzido por Wendy Doniger, Hindu Myths, Penguin, pp. 220-221.

BIOGRAFIA
Ana Isabel Soares (n. 1970) é doutorada em Teoria da Literatura (FLULisboa, 2003) e ensina desde 1996 na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UAlgarve). Integrou a equipa de fundadores da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Interessa-se por literatura, por artes plásticas e por cinema. Escreve, traduz e publica em revistas portuguesas e internacionais. É membro do Centro de Investigação em Artes e Comunicação.
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