Em 8 de agosto inaugurou, na National Gallery em Londres, a exposição Hockney and Piero, onde o museu britânico reafirma a grandeza de um dos principais artistas vivos do cenário mundial, David Hockney (Bradford, 1937), e toda a força da tradição figurativa pictórica inglesa.
A exposição acontece em um espaço relativamente pequeno, a “sala 46” do museu – a mesma onde ocorreu, no ano passado, a exposição Criville’s Garden, em que a obra de Paula Rego (Lisboa, 1935 – 2022) reverberou com a pintura do quatroccento italiano de Carlo Crivelli (Veneza, 1435 – 1495).
A proposta apresentada pela curadora doutora Susanna Avery-Quash (Londres, 1970) para a exposição de Hockney consiste no diálogo de duas pinturas do artista inglês, My Parents (1977) e Looking at Pictures on a Screen (1977), com a obra The Baptism of Christ (1448-50), de Piero della Francesca (Sansepolcro, Itália, 1415 – 1492).
Em uma sala retangular pintada em azul cobalto, a parede principal ostenta a pintura italiana – que foi adquirida pelo museu em 1861 – centralizada entre as duas pinturas inglesas. Nas outras paredes, um cartaz original e com marcas do tempo de outra exposição de David Hockney na National Gallery. Trata-se do cartaz do projeto Artist`s Eyes, que ocorreu no verão de 1981. Além de antigas cartas, caligrafadas pelo próprio artista, a debater com os gestores do museu questões técnicas para a viabilização do evento que ocorreu nos anos 80.
Hockney and Piero é uma exposição que faz parte das comemorações dos 200 anos da National Gallery e, também, um desdobramento do projeto Artist`s Eyes, que entre 1977 e 1990 abrigou dez exposições inovadoras de diversos artistas que tinham como proposta o diálogo com a coleção permanente do museu.
“Tem uma quantidade de tempo em toda fotografia.
Mas muito menos em uma fotografia do que em uma pintura.
De alguma forma, o tempo que faz o espaço.”
David Hockney em entrevista com o crítico Martin Gayford (1952)
No dia 29 de agosto de 2023, Hockney teve uma conversa com Martin Gayford para a estruturação conceitual desta exposição e geração de material para o respectivo catálogo.
Nela, o artista comenta sobre o seu primeiro contato com a obra de Piero della Francesca, em um livro que ganhou, ainda adolescente, ao ser vencedor de um prêmio de arte na Bradford School of Art.
Ele comenta a conexão da composição entre O batismo e o retrato de Henry Geldahler e Christopher Scott (Hockney,1969), obra que hoje se encontra em uma coleção privada e que os modelos Henry e Scott apresentam-se posicionados de maneira frontal e de perfil, de forma similar a apresentação do Jesus Cristo e do João Batista pintados por Piero.
Durante a conversa, o pintor proporciona muitas reflexões sobre a impressão de imagens de quadros e sugere uma certa magia com o surgimento do catálogo colorido – em outra conversa, com curador Hans Ulrich Obrist (Weinfelden, 1968), presente no livro Lives of the Artists, Lives of the Architects, Hockney chega a dizer que “quem tem um catálogo, tem uma obra em casa. Eles não são reproduções, pois eles só existem nesta forma”.
O artista explica para Gayford que a maioria das pinturas do século XV são afrescos e suas reproduções em postais e catálogos são brilhosas, mudando bastante essa relação de escala e textura.
Esta ligação de Hockney com a reprodução impressa é fundamental para entendermos Hockney and Piero, pois existe um paradoxo: em Looking at Pictures on a Screen, aparecem prints de pinturas do acervo da National Gallery – obras de Johannes Vermeer (Delft, 1632 – 1675), Vicent Van Gogh (Zudert, 1853 – 1890), Edgar Degas (Paris, 1834 – 1917) e do próprio Piero della Francesca – e, com estas representações, além do dialogo direto com a obra de Piero, nos são forjados “duplos”. Estes prints ressurgem em tinta sobre tela pela aura do pincel de David Hockney.
O renascimento de uma obra renascentista ganha algumas peculiaridades com a contemporaneidade, uma vez que pinturas em afresco ou têmpora possuem uma opacidade oposta ao brilho da impressão do papel de um catálogo. É este entendimento da diferença da luminosidade do duplo que faz com que o pintor britânico preste tanta atenção ao Batismo de Piero.
Um print de The Baptism of Christ ficou pendurado por mais de 30 anos na parede do quarto da mãe de Hockney, o que influenciou na composição de My Parents – como é possível vermos em imagem disponibilizada no catálogo da exposição.
Além disso, para o artista, seu encantamento pelo quattrocento também vem de uma ideia de “clareza e brilhantismo” naturais da luz da Itália, local que remete para David Hockney o clima e a luminosidade da Califórnia, onde o pintor viveu por muitos anos e ainda possui duas residências.
Hockney and Piero ficará na National Gallery até o dia 27 de outubro de 2024. A exposição valoriza mutuamente grandes símbolos ingleses – um dos principais artistas e o acervo de um dos principais museus –, além de mostrar, de forma clara, como que em um mundo pós segunda guerra o Reino Unido pareceu não se influenciar majoritariamente entre expressionismos abstratos e construtivismos: simplesmente seguiu pintando corpos humanos com Francis Bacon (1909 – 1992), Lucian Freud (1922 – 2011), David Hockney e tantos outros artistas.
Dificilmente artistas do sul global e de países menos influentes no cenário mundial da arte teriam força para seguirem tão relevantes mundialmente nas últimas décadas mantendo-se fiéis ao figurativismo pictórico, pois vivemos em um mundo que a arte extrapolou das telas. Parece que nas últimas décadas, na “terra da rainha”, se valorizou o ato de tomar um chá diante de uma tela bem pintada e com algum figurativismo.