article
No Istambul Modern, Olafur Eliasson apresenta correnteza poética a desaguar no Bósforo
DATA
20 Dez 2024
PARTILHAR
AUTOR
Adolfo Caboclo
Certas narrativas nascem com um olhar alienígena – que, ao contrário da ideia de indígena (aquele que é natural da terra), parte de uma percepção oriunda de terras distantes. Ponto de vista que tenta desbravar a ideia de“abismo epistemológico, tão debatida nas humanidades contemporâneas.

Certas narrativas nascem com um olhar “alienígena” – que, ao contrário da ideia de “indígena” (aquele que é natural da terra), parte de uma percepção oriunda de terras distantes. Ponto de vista que tenta desbravar a ideia de “abismo epistemológico”, tão debatida nas humanidades contemporâneas. Para o cenário artístico do ocidente, tanto eurocêntrico como sul-global, cravar os pés nos limites da Ásia gera uma ampliação de horizontes riquíssima. Limitar os olhos para apenas alguns países não é apenas cruel, mas também emburrecedor.

Diante desta premissa, Istambul apresenta-se como uma cidade de confluências culturais – local com uma vigorosa bienal, que, no ano que vem, apresentará sua 18º edição e que já contou com curadores como Carolyn Christov-Bakargiev (Nova Jersey, EUA, 1957), Nicolas Bourriaud (Niord, França, 1965) e Adriano Pedrosa (Rio de Janeiro, Brasil, 1965). Ao mesmo tempo que a cidade, desde os anos 20 – sob as diretrizes republicanas de Mustafa Kemal Atatürk (Selonica, antigo Império Otomano, 1881) -, alinha-se com as demandas do cenário artístico do norte do globo, Istambul também impõe – segundo dados da plataforma Susma24, criada há oito anos para combater a censura e autocensura na Turquia e apuração de reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo – um sufocamento de artistas pelo atual governo de Recep Tayyip Erdoğan (Kasımpaşa, Turquia, 1954), limitando possibilidades de debates políticos por vias artísticas.

É neste cenário agridoce, grandioso e indigesto, que o Istambul Modern apresenta-se como o principal museu de arte contemporânea da Turquia e um dos mais incríveis do mundo: inaugurado em 2004 em um projeto assinado pelo renomado arquiteto Renzo Piano (Pegli, Itália, 1937). Neste prédio, foi proposto um diálogo estrutural com o tecido urbano istambulense e, em especial, com as margens do Bósforo. É nesse contexto que o artista Olafur Eliasson (Copenhague, Dinamarca, 1967) apresenta, até o dia 9 de fevereiro de 2025, sua exposição individual. Esta revisita obras de sua carreira e também apresenta trabalhos inéditos, pensados para o Istambul Modern. Your unexpected encounter é a primeira grande mostra do artista na Turquia desde a Bienal de Istambul de 1997, curada por Rosa Martínez (Soria, Espanha, 1955), onde Eliasson apresentou o trabalho Beauty (1993). A exposição também é fruto da curadoria da istambulense Öykü Özsoy e seus pares, Nilay Dursun e Ümit Mesci, e é a primeira organizada de forma independente da coleção da instituição na Sala Temporária de Exibições do museu.

Logo no início do percurso de Your unexpected encounter, foi optado pelo estabelecimento de uma narrativa com referências diretas e sem ruídos ao Bósforo. Na obra Dusk to dawn Bosporus (2024), o artista islandês-dinamarquês evoca o movimento das águas com uma composição feita em vidros coloridos sobre madeira. Além disso, apresenta obras com estudos de cores em tinta acrílica e uma escultura em bronze.

É interessante pensar que Eliasson optou pelo uso de cor em uma primeira impressão das águas turcas. No livro biográfico Istambul – Memórias de uma cidade, do vencedor do Nobel de Literatura Orphan Pamuk (Istambul, 1952), o escritor descreve Istambul como uma cidade tomada por um sentimento chamado hüzun, que é uma espécie de melancolia coletiva, relacionada à decadência de um antigo grande império. Ao falar de artistas europeus e a forma que eles viam a cidade, Pamuk mostra no livro um desenho das margens do Bósforo feito em preto e branco por Le Combusier (La Chaux-de-Fonds, Suíça, 1887). Pelo visto, o olhar nórdico de Olafur Eliasson percebe alguma luz extra, algum calor a mais que se faz como feixes de luz ao gerar uma poética istambulense. Mas toda essa romantização do calor e sua coloração em prisma logo se desfaz em um segundo momento expositivo.

Nesta segunda parte, as obras crescem em escala, assim como a proporção da narrativa curatorial proposta. Extrapola as margens do Bósforo e as fronteiras turcas. Uma gigantesca parede cristalina, com textura lapidada triangularmente como diamantes, separa os salões do Istambul Modern. Trata-se da obra Less ego wall (2015). No final deste salão, um grande globo de metais, espelhos e LEDs chamado The critical zone sphere (2020) nos alerta que não podemos falar de águas sem falarmos do ecossistema que sustenta o planeta.

Entre essas duas instalações, Eliasson apresenta uma série de fotografias, The glacier melt series (1999/2019), que assusta os espectadores ao escancarar a transformação das paisagens glaciais durante as últimas décadas de aquecimento global. Se existe um sentimento turco de hüzun pela melancolia da decadência do Império Otomano, um acentuar melancólico se faz legítimo diante do processo de extinção humana que acompanhamos em tempo real.

No terceiro momento da exposição, ainda abraçado pela superfície de Less ego wall (2015), a narrativa curatorial transmite uma lógica maior do que a planetária. Com obras como Your solar nebula (2015) e The lost compass (2013), a exposição propõe uma ideia constelar, galáctica e apresenta lógicas de magnetismo que vão além da Terra. Este sentimento universal também vem com Unforgetting solar exposure (2020), uma série em aquarela a remeter questões solares deste processo de desregulação planetária.

Apesar deste terceiro momento da exposição apresentar ao espectador obras que sugerem uma realidade maior, universal, o espaço expositivo utilizado é bem menor que o da segunda fase, causando ao espectador um sentimento oposto: o de achatamento espacial. Além disso, esta parte da exposição reúne obras que, apesar de sua boa plasticidade, flertam com uma ideia de glacialidade e até mesmo de jornada (é o caso da série de fotografias de barcos The ship series, de 2024), que não parecem tão comprometidas com a narrativa curatorial, mas com a necessidade institucional de expor esses objetos.

Talvez seja por isso que, neste momento, a exposição apresenta um entroncamento que proporciona ao público três opções de caminho, duas salas escuras pelas laterais ou a continuação da exposição em linha reta. Antes da sala escura que apresenta Model for a timeless garden (2011) – uma belíssima instalação que envolve sons, jatos de água e luzes estroboscópicas -, três instalações com pedaços de madeiras coletados em águas islandesas parecem atrapalhar a correnteza do fluxo expográfico: metaforicamente, como nas águas de um rio, neste entroncamento cheio de curvas, a exposição fica um pouco caótica e poluída.

Em seu quarto momento, o menos inspirado, Your unexpected encounter sufoca as esculturas tubulares que consagraram a carreira de Olafur Eliasson e até mesmo o Sunset kaleidoscope (2005) – obra que dialoga diretamente com a vista para o Bósforo e todos os elementos apresentados nos primeiros momentos – ao abarrotar o centro da sala de exposições com incontáveis estudos do artista feitos em 1996 e uma fila de visitantes ávidos por conteúdo em suas redes sociais possíveis de se gerar no jogo de luzes e sombras de Your pluralistic coming together (2024).

Com mais acertos do que equívocos, Your unexpected encounter tem um último momento grandioso. Room for one colour (1997) é uma enorme sala com potentes luzes amarelas e o teto negro. Nela, o espectador, imerso nesta gama tonal, passa a ver os corpos presentes na sala de exposição exclusivamente em tons acinzentados. Como as chamas e as cinzas de um apocalipse anunciado, um encontro nem tão inesperado assim.

Your unexpected encounter encanta os olhos alienígenas e naturais do antigo Império Otomano. Plasticamente, é tão bela quanto a arquitetura do Istambul Modern e possibilita o grande público a absorver um bom panorama do trabalho de Olafur Eliasson. A curadoria, apesar de algumas inconsistências na narrativa expográfica, apresenta um trabalho muito forte na parte de textos, em especial com um catálogo da exposição muito rico, intuitivo e bem escrito.

Uma pena que o atual cenário turco nos possibilite, por um lado, olhar para questões climáticas – como o aquecimento global e o degelo polar -, mas, por outro, nos permite ver apenas a ponta desse iceberg.

BIOGRAFIA
Artista, curador, crítico e poeta brasileiro natural de São Paulo. Especialista em arte, comunicação, gestão de negócios e neurociência. Mestre em Estudos Curatoriais e doutorando em Arte Contemporânea na Universidade de Coimbra. Pintor residente do Ateliê Fábrica, curador de diversos projetos expositivos como o "Projeto Piccolino" (Doppo) e "Uma exposição no escuro" (Lufapo Hub). Participante do coletivo Pescada nº5 e fundador do Sarau das Flores e da Revista Baleia.
PUBLICIDADE
Anterior
article
Técnica mista sobre papel #8: O pão do Salvador
19 Dez 2024
Técnica mista sobre papel #8: O pão do Salvador
Por Luísa Salvador
Próximo
article
Como poeira sobre vidro
23 Dez 2024
Como poeira sobre vidro
Por Tomás Camillis