interview
Entrevista a Rudolfo Quintas, autor da Capa do Mês
DATA
22 Jul 2025
PARTILHAR
AUTOR
Mafalda Ruão
Entre a criança que foi e o astronauta que encarnava, Rudolfo Quintas, um “artenauta” que pela arte descobre mundo e dá saltos no desconhecido, vive numa viagem entre a realidade sentida e a ambição de sentir. Com a Umbigo, o artista abordou neurociência, psicologia, espiritualidade, tecnologia e política, e o espaço vital que ocupam de pesquisa e reflexão na arte atual. Que não seja motivo de pânico, mas fica o alerta: data e sentimento não são mais um casamento paradoxal. A relação entre Inteligência Artificial (IA) e as emoções humanas levanta um dos debates mais relevantes - o do conceito de privacidade emocional e de saúde mental. E "Sentiment Data Painting", obra com a qual venceu o prémio Norberto Fernandes em 2024 (Altice), está aí para o confirmar.

Mafalda RuãoAfirmas ter o desejo de explorar e compreender o mundo através da criação. Quando te surgiu essa vontade e quais as razões que impulsionaram a tua produção artística?

Rudolfo QuintasUma das razões que mais me motivam a criar, quase obsessiva e interruptamente, é a ligação do processo criativo à vida como forma de autoconhecimento. Isto manifestou-se de maneira muito natural ao participar nas primeiras exposições de desenho aos sete anos de idade ou ao organizar bailes de dança Rap na escola. Atualmente, vejo a criação artística como um trabalho de interpretação da realidade, que desnudamos antes de voltarmos a repor camadas transformadas. Na sua origem está uma energia espiritual, que vai além do entendimento cultural, académico ou mercantil da arte. Faço uma comparação com a criança que ao brincar explora e adquire o seu conhecimento sobre o mundo, ou ao astronauta que se lança no inexplorado. É no deambular por estas formas de conhecimento, adicionando-lhes uma expressão estética, que reside muito do impulso artístico.

MRFazendo jus a essa pluralidade de expressão, o teu trabalho combina arte com ciência, filosofia e espiritualismo. De onde vem este interesse tão vasto, e de que forma se manifestam estes campos quase opostos na tua prática?

RQDo ponto de vista consciente e intencional, esta pluralidade vem do facto de querer experienciar o que é isto de viver, e cuja resposta encontro existindo do modo mais simbiótico possível corpo/mente/espírito. No fundo, vem de um desejo de ancorar o subjetivo e o imaginário próprio com o comunitário; e por último, de um investimento em formação e estudos artísticos e técnico científicos para desenvolver uma maior flexibilidade cerebral na forma de interpretar o mundo. Sempre desafiei os horizontes de possibilidades através de escolhas não óbvias: antes dos 20 anos já tinha dirigido uma rádio local; quase fui bem-sucedido a reconstruir uma escola em Timor; fui vice-campeão nacional de kickboxing.... Esse campo expandido de interesses nasceu da vontade de acreditar que existe algo para lá da realidade que me rodeia. Por outro lado, fascina-me que um projeto artístico seja um ponto de diálogo sobre várias áreas de conhecimento: psicologia, neurociência, computação, ciências sociais, linguística... Exemplo disso é a instalação audiovisual generativa, interativa e imersiva - "Black Hole" (2018), que questiona os limites da experiência física e cognitiva. Trabalhando em co-criação com comunidades cegas, o objetivo foi criar com essa comunidade, tendencialmente excluída, experiências que expandem a nossa. Neste caso, ao entrar numa espécie de “buraco negro” os visitantes perdiam gradualmente a referência visual fixa, transformando o encontro num diálogo participativo, cujos elementos visuais e sonoros eram animados pelo movimento corporal, criando um espaço de liberdade e exploração. Outro caso foi o projeto de investigação artística "O Ato Ciênsivel" (2023), construído por uma equipa multidisciplinar, a fim de resgatar memórias de idosos. Expostos a uma experiência odorífica, os participantes reagiam com lembranças passadas que eram traduzidas em imagem por um software de IA.

MRAté que em 2024 venceste o prémio Norberto Fernandes, atribuído pela Altice, na categoria arte e tecnologia, com a obra "Sentiment Data Painting - World News 2024". O que te motivou?

RQCreio que a motivação de um artista é um espírito revolucionário, e fortemente levantado por questões pessoais. Com as "Sentiment Data Paintings" eu queria abordar a questão da saúde mental. A minha mãe sofreu toda a sua vida de doença bipolar e eu passei por muitos episódios de depressão ao tentar compreendê-la. Quando era jovem, estes revelam-se na violência das minhas pinturas, as quais acabava por destruir, como catarse. Daí essa vontade de abordar esta questão: ter saúde mental não é um dado adquirido. Não só precisamos conscientemente de exercitá-la, como de entender que existem muitos fatores influenciadores. A sobrecarga de notícias negativas é um deles. E numa época em que as notícias estão no telefone e estamos sempre ligados, qual a dimensão deste embate psicológico na nossa saúde mental?

MRTrata-se de uma pintura digital generativa. O que significa isto?

RQ"Data painting" refere-se a uma pintura criada a partir de dados (informação). 'Generativa' caracteriza uma pintura que é dinâmica, onde cada instante temporal é formalmente único em termos plásticos e não se repete. Em poucas palavras, estas pinturas leem jornais online, analisam o sentimento das notícias através de um modelo IA e pintam de acordo com o resultado: às notícias positivas são atribuídas cores quentes, às notícias negativas cores frias e às notícias neutras cores neutras. O resultado são imagens que reverberam o sentimento das frases divulgadas diariamente pelos media.

MRÉ caso para dizer que vais muito além da estetização do real atual. Podemos afirmar que é uma reflexão sobre a ética da IA?

RQComecei a usar a programação como meio de criação artística no início dos anos 2000, numa altura em que pensava sobre o impacto da IA no mundo, e obviamente na criação. Trabalhar com IA como ferramenta e temática não nasceu de uma atração pela vertente estética generativa, antes pelo desenvolvimento de uma perspetiva crítica a partir da própria máquina, expondo as suas fragilidades e riscos. Como é o caso dos processos de automatização, do cruzamento de meta dados com perfis emocionais (Emotional AI), ou da retirada de decisão e supervisão final dos seres humanos (sistemas de IA autónomos ou AI Agents). Foi isto que me propus a explorar com a obra digital "KESYTONE I,II,III,IV" (2019), que aprendeu a ler e a escrever português autonomamente e, assim, desenvolvia as suas próprias ideias a partir de notícias publicadas diariamente nas redes sociais. Neste contexto, uma das questões que considero impossível de automatizar são as emoções. Por exemplo, “Trump ganha as eleições” / “Trump perde as eleições” claramente provocará sentimentos diversos em pessoas diferentes. No entanto, os atuais modelos de IA vão analisar uma notícia como positiva e a outra como negativa. "Sentiment Data Painting" confronta-nos com isto mesmo e permite a reflexão: podemos até considerar a IA neutra, porque não há uma pessoa por detrás da obra a dizer se aquela notícia é negativa/positiva com base nas suas crenças de valores, mas porque é que a IA decidiu que seria aquela a pontuação? E será que esse tipo de análise é usado comigo? Será correto uma máquina criar o meu perfil emocional, sem a minha autorização, e usá-lo forma opaca em sistemas com os quais interajo? As emoções são altamente subjetivas e também contextuais, algo que a IA não reconhece. Porém, estamos a integrar estas tecnologias sem a necessária reflexão no seu impacto ético, emocional e desequilibro no ambiente natural. Falamos da mesma responsabilidade ética que influencia as emoções humanas e, assim, pode manipular comportamentos e interferir na saúde mental.

MRAssim sendo, como é que interpretamos os “resultados” da obra à luz da subjetividade de leituras de um acontecimento global?

RQExistem duas reflexões. Uma é o viés da IA como expliquei anteriormente; outra é a reflexão sobre a saúde mental. Os resultados da obra mostram que há uma tendência para se escreverem notícias associadas a sentimentos negativos. Estes resultados são objetivos, não muda com a subjetividade, ou o ponto de vista com que falamos de determinado assunto. Comunicar constantemente assassinatos, roubos ou guerras altera a percepção do mundo, ativando uma sensação de perigo e potencialmente promovendo desequilíbrios na saúde mental. O meu argumento é que a saúde mental implica um ecossistema salutar para se manter saudável. Sobre a neutralidade da IA, devemos sempre desconfiar.

MRSe a obra deriva da análise de notícias publicadas globalmente, então somos confrontados com o papel crucial do jornalismo no tecido mundial. Que reflexões fazes sobre este dado?

RQÉ essencial refletir sobre esse papel. Podemos ter jornalismo em sistemas autoritários, mas será que jornalismo de censura nos serve? Podemos ter jornalismo em democracia, mas se estiver refém do capitalismo da atenção, será que nos serve? O jornalismo não é uma ciência, mas procura informar os cidadãos sobre a verdade dos acontecimentos. A minha conclusão é que a patologia acabará por surgir se o foco principal dos media for a tragédia. Para o evitar, muitos de nós intuem que devem desligar-se das notícias, o que é, de certa forma, também um fim trágico.

MRSerá que esta prática artística e a interatividade do público com obras que invocam temas tecnológicos ajudam a combater medos e desconhecimentos no que concerne as novas tecnologias e IA?

RQNão necessariamente. Podemos encontrar exemplos disso quando temos práticas artísticas com uma componente conceptual crítica ou de investigação que propõem reflexão e um sentido crítico sobre esses temas. Porém, o simples ato de visitarmos uma exposição cujas imagens foram criadas por Inteligência Artificial Generativa não nos ajudam por si só a dialogar criticamente. Acredito também no contrário - um projeto artístico criado com papel e caneta pode ajudar a combater esses bloqueios. E com isto quase desvendo um projeto ainda em estado embrionário...

MRDeixamos no ar? O que se segue?

RQObras de construção civil e gestão de projeto. Em 2016, comprei um escritório industrial em Marvila para cumprir um sonho antigo: ter um espaço de atelier e project space que me permitisse acolher pontualmente projetos de outros artistas - em particular na arte computacional e artes performativas mais experimentais - e dar continuidade a um projeto de residências artísticas na arte computacional que iniciei em 2017, o Temp Studio. Processos criativos irão fluir, mas exposições ficam para o segundo semestre de 2026.

PUBLICIDADE
Anterior
agenda
Ensemble DME, na Semana da Pós-Graduação em Composição Musical Aplicada
17 Jul 2025
Ensemble DME, na Semana da Pós-Graduação em Composição Musical Aplicada
Por Umbigo
Próximo
article
Chantal Akerman: Travelling no MAC/CCB
22 Jul 2025
Chantal Akerman: Travelling no MAC/CCB
Por Katya Savchenko