Chantal Akerman: Travelling é a primeira grande retrospetiva da obra de Akerman, concebida pelo Bozar – Centro de Belas Artes (Bruxelas), pela Fundação Chantal Akerman e pelo CINEMATEK – Arquivo Real do Cinema Belga. Com curadoria de Laurence Rassel, em colaboração com a Céline Brouwez (Fundação Chantal Akerman), Alberta Sessa (Bozar) e Marta Ponsa (Jeu de Paume), a exposição foi apresentada pela primeira vez no Bozar, em Bruxelas, cidade natal de Akerman, e posteriormente apresentada em Paris, a sua "cidade do amor e da amizade", pelo Jeu De Paume.
A mostra traça cronologicamente o trabalho de Akerman e apresenta grandes instalações de vídeo como Do leste, na margem da ficção (1995), Uma voz no deserto (2002) e o seu último trabalho Agora (2015), bem como o arquivo da artista. A exposição no MAC/CCB segue a lógica curatorial das edições anteriores. No entanto, é organizada numa disposição circular modificada, substituindo a sequência linear mais adequada às salas do Bozar. Em vez de seguir Akerman "na estrada", o visitante permanece num espaço contido que evoca um apartamento ou uma sala seccionada, ambientes que sustentaram as mise-en-scènes recorrentes da artista.
Chantal Akerman: Travelling começa com uma série de filmes de 8mm recentemente redescobertos, filmados em 1967, no âmbito da sua candidatura ao Institut National Supérieur des Arts du Spectacle (INSAS), em Bruxelas. Estes esboços fragmentários da vida quotidiana, indiscutivelmente influenciados pela sua então recente descoberta de Godard, são mostrados ao lado de Saute ma ville (Rebentar com a minha cidade), uma curta-metragem realizada em 1968 enquanto Akerman estudava no INSAS. Criada pouco antes de sua primeira partida para Paris, que marcaria o início da sua existência nómada entre Paris, Nova Iorque e Bruxelas, o filme apresenta a artista como uma jovem que provoca o caos na sua cozinha, terminando com a explosão da mesma. Muito antes de Martha Rosler ter transformado a área da cozinha numa plataforma para mensagens críticas em Semiotics of the Kitchen (1975), ou de Judy Chicago ter posto uma mesa para mulheres históricas em The Dinner Party (1979), a protagonista de Akerman já reclamava esse cenário doméstico, símbolo de papéis sociais de género, como um palco criado por si própria.
O espaço doméstico volta a ser determinante na obra-prima seminal de Akerman, Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975). O filme segue Jeanne na sua rotina diária: cozinhar, limpar e cuidar do filho, ao mesmo tempo que ganha a vida como trabalhadora do sexo, tudo encerrado nos limites de um apartamento modesto. Estas atividades, realizadas por Delphine Seyrig com uma elegância e uma precisão controlada, enquadram-se igualmente nas expetativas historicamente construídas, baseadas no género, do trabalho feminino. No entanto, ocupam extremos opostos do espetro do que era considerado socialmente aceitável naquela época - e, sem dúvida, pouco mudou nos cinquenta anos que se seguiram. A tensão desta dupla posição encontra uma libertação radical no ato que encerra o filme, que é revisitado na exposição através da instalação de vídeo de Akerman, Woman Sitting After Killing (2001). Exibida em sete ecrãs sincronizados, a imagem mostra o último plano longo do filme, em que Jeanne aparece calma, quase serena, depois de ter assassinado um cliente.
Nos seus estudos sobre as dimensões políticas dos afetos, a académica feminista Sara Ahmed introduz a figura do desmancha-prazeres feminista, alguém que reclama as emoções e as expressões de descontentamento como ferramentas de resistência contra normas dominantes e opressivas. Um desmancha-prazeres não encontra a sua realização na manutenção da harmonia social, mas na perturbação da normalidade prescrita. Embora o termo tenha surgido numa vaga posterior do pensamento feminista, a posição que descreve pode ser atribuída aos personagens de Akerman e, sem dúvida, à própria artista. Em My Mother Laughs, um livro magistral e profundamente sincero, escrito enquanto Akerman acompanhava a mãe na fase final da vida, a artista refere-se a si própria como indiferente às aparências e à etiqueta, tendo abandonado a escola, nunca tendo assentado, casado com um homem ou tendo filhos. Recusando-se à conformidade com as expectativas da sociedade, Chantal transformou a sua energia de desmancha-prazeres na sua linguagem cinematográfica.
"Não tenho vida. Nunca aprendi a criar uma para mim. Aqui ou noutro lugar. Mas nos outros lugares é sempre melhor. Por isso, partir, voltar a partir e regressar foi tudo o que consegui fazer". Esta citação de My Mother Laughs descreve o estilo de vida nómade escolhido por Akerman, uma espinha dorsal narrativa que percorre grande parte do seu trabalho e que dá o título à exposição. Do leste (1993) destaca-se como uma das suas produções mais ambiciosas: um documentário de estrada filmado durante a sua viagem desde a República Democrática Alemã à Polónia, e da Ucrânia para a Rússia, impulsionada pela sua investigação sobre a história da sua família, vinda da Polónia e vítima do Holocausto. Este filme também forneceu o material para a sua primeira instalação de vídeo de 25 canais, Do leste, na margem da ficção (1995), criada para o Walker Art Center e, agora, apresentada como um dos destaques desta exposição.
Tendo um passado familiar migratório, Akerman envolveu-se de forma consistente com a temática da deslocação e das fronteiras, manifesta tanto nos seus trabalhos anteriores como Notícias de casa (1977), como nas suas peças mais recentes, entre elas Histórias da América: comida, família e filosofia (1989) e Do outro lado (2002), uma instalação de vídeo apresentada pela primeira vez na Documenta 11, de Okwui Enwezor, e filmada ao longo de uma rota migratória do México para os EUA, no deserto do Arizona. A exposição no MAC/CCB apresenta também Uma voz no deserto (2002), que corresponde à terceira parte dessa instalação, revelando a sequência final do filme projetado num ecrã instalado no deserto, com Akerman a narrar a história de um imigrante mexicano sobre a imagem de uma autoestrada que se estende em direção a Los Angeles.
Uma característica distintiva da exposição Chantal Akerman: Travelling é a apresentação exaustiva do arquivo da artista – coisas efémeras, guiões, fotografias dos bastidores, imagens de filmes e excertos de vídeo –, exibido em conjunto com uma biografia detalhada. Gerido pela Fundação Chantal Akerman, o arquivo está alojado no CINEMATEK (Arquivo Real de Cinema Belga), do qual Akerman foi membro da direção durante muitos anos e cuja sede serviu de cenário a um dos seus primeiros filmes em 8 mm. Através deste arquivo, Akerman adquire mais um "lar" entre muitos – um lugar que continua a acolher a sua presença, mesmo na ausência do seu corpo físico. E este lar também já viajou: de Bruxelas para Paris, Lisboa e, espera-se, até mais além.
A exposição pode ser visitada no MAC/CCB até dia 7 de setembro.