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Não se nasce português, torna-se: We’ll be right back no Kunstraum Botschaft
DATA
28 Out 2024
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AUTOR
Laila Algaves Nuñez
Já faz quase uma década desde que o Camões Berlim inaugurou o seu Centro Cultural – um espaço dedicado à dinamização e promoção das artes portuguesas no coração da capital alemã. Neste marco, seria natural que as instalações do Instituto acolhessem uma mostra algo retrospetiva, algo autorreferenciada, em jeito de celebração do trabalho realizado.

Já faz quase uma década desde que o Camões Berlim inaugurou o seu Centro Cultural – um espaço dedicado à dinamização e promoção das artes portuguesas no coração da capital alemã. Neste marco, seria natural que as instalações do Instituto acolhessem uma mostra algo retrospetiva, algo autorreferenciada, em jeito de celebração do trabalho realizado. We’ll be right back é a segunda exposição curada por Guilherme Vilhena Martins para a instituição, e também a última antes da mesma migrar para a zona de Schöneberg, na companhia vicinal de galerias como KOW, Heidi e Molitor. Partindo do historial de criadores que já passaram pelo Centro ao longo destes dez anos, foram eleitas 13 obras de oito artistas – todos portugueses que são ou já foram residentes na Alemanha. Juntos, representam uma modesta amostra do que poderiam ser as tendências da arte contemporânea em Portugal, ao mesmo tempo que propõem uma revisão daquilo que é ser, essencialmente, português, dentro e fora do seu país natal.

Talvez não seja eu, ainda, suficientemente portuguesa para articular uma reflexão a partir do interior – não se nasce português, torna-se. Curiosamente, contudo, a primeira entrada no diário que tentei alimentar quando aqui cheguei, em fevereiro de 2019 (diga-se, de passagem, sem a intenção de ficar, e com os olhos ingênuos – que por vez ainda me assaltam – de quem vê Portugal como o epítome de uma europeidade idílica­), já pressentia o tal do saudosismo nacional. Na altura, escrevi: “no fundo de tudo que é belo, há uma melancolia própria do que é muito antigo”. Pouco tempo depois, sublinhei no livro a vida nos vulcões, de Rita Isadora Pessoa, algumas frases do poema “Nota sobre o fogo”: “esta noite me torno antiga no mundo (…) / nesta noite, nada se perde”[1]. Em retrospetiva, pensava experimentar, pela primeira vez, um lugar que valorizava a própria história, que preservava a memória secular das suas ruas e monumentos – que reconhecia, em suma, a importância deste movimento constante para o passado. De onde vim, no outro lado do Atlântico, a ordem é a do progresso; um futuro que atropela identidades, implode patrimónios, aterra morros, remove moradias, amnistia ditadores.

Escrevo, agora, porém, após cinco anos como residente – dois como cidadã –, às sombras da recente notícia do assassinato de Odair Moniz e noites de uma bárbara violência policial no Bairro do Zambujal. Não tardou para que eu aprendesse que, no Brasil ou em Portugal, as políticas da memória desembocam no apagamento sempre parcial, sempre discriminatório, de tudo aquilo que não cabe, hoje, numa ideia de país. Pertencer ao passado é um privilégio – pertencer ao presente, também. Pertencer, em síntese; de ambos os lados da fronteira, ainda que as raízes se afrouxem ou se movam. “Esqueceram que não há nada mais solitário do que esquecer”, diz-nos Rita de Matos, ao descortinar as origens árabes da palavra (e, quiçá, do sofrer de) saudade em Das Saudades Sem Dono (2022). “Suad”, “saudá” e “suaidá”, termos para a complexa bile negra que nos assola desde que há humano e memória, já figuravam noutro alfabeto que não o nosso há muitos, muitos séculos.

Poder-se-ia elencar, aqui, as razões para a eleição deste sentimento como traço de orgulho em Portugal – muitos já o fizeram. No entanto, interessa-me pensar, na verdade, as decorrências de tal escolha para a representação de um estar fundamentalmente separado: no tempo, na distância, de si próprio, dos outros. No Brasil, embora também entendamos de ausência e gostemos da poesia da “saudade”, penso que não seria completamente equivocado supor que miramos a nossa dignidade nacional, precisamente, no contrário – somos o “povo da mistura”, o ponto de inflexão de muitas culturas, credos e cores em união (pressuposto este que não deixou de implicar as suas próprias complicações sociais, como é claro). Rita de Matos, assim como Márcio Carvalho – que apresenta em We’ll be right back três peças da série The Era of Involuntary Memory produzidas em 2016 e 2018 – e muitos outros artistas portugueses nascidos no pós 25 de Abril, trabalha declaradamente sobre as dinâmicas sociais da memória e da exclusão que forjam um país solitário (ou que assim imagina a si mesmo). Há também algum vazio presente nas representações de Sofia Seidi, que pinta momentos de familiaridade e desconforto numa espécie de realismo mágico, longínquo e melancólico.

Segundo Guilherme Vilhena Martins, importava assinalar, na curadoria desta mostra, dois percursos artísticos distintos – abstração e figuração –, que significam, quiçá, as duas faces da separação – partir e voltar. Aires de Gameiro, André Santos Martins, Carolina Serrano, Jorge Lopes, Teresa Murta e os outros três artistas já mencionados partilham todos uma condição comum: em algum momento, optaram pela coragem de ir ou de ficar. Em qualquer um dos casos, penso não haver, verdadeiramente, fuga ou retorno possível: “a história se torna biografia, e vice-versa”, escreve o curador na folha de sala, em referência a obra de Mónica de Miranda. Como em Staircases (2022), o vídeo em loop de André Santos Martins, uma nacionalidade – uma nação – talvez seja este espaço sempre transitório, “entre” o fora e o dentro, o real e o virtual, que se constitui de cumulativas camadas (geográficas, geracionais, simbólicas) e que se transforma permanente e constantemente, embora, no fundo, pareça sempre o mesmo. A escadaria é eterna; o ponto de chegada, sempre adiado; a origem, sempre mais longe, sempre múltipla. Para tornar-se português, portanto, deve-se abrir espaço tanto à saudade quanto à revolução, tanto à lágrima quanto à cor, tanto à casa quanto à viagem, tanto a’Os Lusíadas quanto às Memórias da Plantação. Tudo o que foi e segue sendo, e tudo o que é e deve ser outro.

We’ll be right back. Mas já nada será o mesmo. E, ainda assim, nada se perde.

A exposição está patente no Kunstraum Botschaft / Camões Institut Berlim até 31 de outubro.

 

[1] Pessoa, Rita Isadora. (2016). “Nota sobre o fogo”. In: a vida nos vulcões. Oito e Meio.

BIOGRAFIA
Laila Algaves Nuñez é investigadora independente, escritora e gestora de projetos em comunicação cultural, interessada particularmente pelos estudos de futuro desenvolvidos na filosofia e nas artes, bem como pelas contribuições transfeministas para o pensamento social e ecológico. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema (PUC-Rio), mestre em Estética e Estudos Artísticos (NOVA FCSH) e doutoranda em Estudos Artísticos - Arte e Mediação (NOVA FCSH) com bolsa FCT, pesquisa o potencial da escrita e da ficção como ferramentas para a salvaguarda dos Direitos da Natureza, propondo e participando em projetos de investigação-ação que atravessam as intersecções entre palavra, performance, imaginação e ativismo ecológico.
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