Não podia deixar de aproveitar a ocasião proporcionada por uma das maiores exposições de Jeff Wall até à data – que ocupa todo o edifício do MAAT com um impressionante número de obras (apesar de se fazer sentir a ausência de alguns clássicos) –, especialmente quando associada ao recente lançamento em português dos seus Escritos sobre Arte – uma demonstração clara da persistente importância do discurso teórico que sustenta o seu trabalho – para recuperar uma questão levantada recentemente por Dorrell Merritt na ArtReview[i], por ocasião de uma outra grande exposição do artista no White Cube – mas que já tem sido amplamente discutida ao longo das duas últimas décadas: há futuro para a fotografia Tableau?
Faço desde já uma ressalva de que a palavra “acabada” (presente no título) não sugere, por si, qualquer carácter obsoleto no trabalho de Jeff Wall. Refere-se, antes, à sua abordagem consciente da imagem fotográfica como construção final e estabilizada, resultado de um processo controlado de encenação, produção e pós-produção, que culmina num objeto único e definitivo (o que é exposto), sendo que qualquer transição para outro suporte passa a ser uma reprodução, tal como uma pintura. Esta concepção da imagem como artefacto único e estabilizado é central na fotografia tableau – mas não se esgota nela.
Longe de pretender uma generalização que reduza o trabalho do artista canadiano ao “modo de apresentação” das suas fotografias, é difícil não o abordar, quando este – entre os outros “suspeitos do costume” como Sherman, Struth ou Gursky – é uma figura central, quase canónica, desse modo de operar que desempenhou um papel decisivo na emancipação da fotografia enquanto “arte” a partir dos anos 80, abrindo portas ao interesse institucional e levantando novas questões e ambições para o medium.
O reconhecimento de que o trabalho de Jeff Wall beneficia, nomeadamente no mercado da arte, deve-se, em grande parte, à partilha da sua fotografia com lógicas da arte não associadas a este suporte, como a unicidade, a monumentalidade e a escassez. Essa decisão implicou um afastamento das qualidades historicamente associadas à fotografia, como a acessibilidade e a reprodutibilidade, às quais se somam hoje outras, talvez mais difíceis de fixar, como a fluidez e a fragmentação que definem a cultura visual contemporânea.
Afastando, desde já, o argumento de uma arte obsoleta – critério que só se aplica à “má arte”[ii] - interessa-me pensar se esta perdeu a capacidade de problematizar a forma como a fotografia é exposta. E, mais ainda, se continua a depender da prática fotográfica para existir enquanto linguagem.
O trabalho de Jeff Wall sempre esteve ancorado à realidade, recusando a ficção para o definir. O artista explica que todas as imagens nascem de situações reais e que, por isso, estão mais próximas do documental e não tem ambições pictorialistas, mesmo quando inspiradas pela literatura. Recusa o amadorismo, não só enquanto forma de representação, mas também como estética essencial à fotografia – uma posição central do famoso ensaio Marks of Indiference[iii]. Defende, tal como Michael Fried, que esta postura – assim como a existência de um original –culmina numa aproximação ou elevação da fotografia ao estatuto de arte autónoma, próxima da pintura e da escultura. Não se trata de “usar” a fotografia, mas de fazer fotografia, sendo o artista um operador pleno do processo e das suas intenções. Tal legitimação tem sido verdade, até comercialmente.
No entanto, um género que imita a realidade – por oposição à espontaneidade, ao erro ou ao gesto — pode encontrar aqui, a par de outras questões, parecenças com o modo de operar de uma tecnologia em ascensão: a inteligência artificial.
Não pretendo tirar conclusões precipitadas até porque, à data em que escrevo, talvez a IA não tenha ainda capacidade de “imitar” a este ponto. Ainda assim, não tenho dúvidas que, em breve, esta capacidade virá.
Wall é certamente mais contido no seu desapego ao real do que outros fotógrafos do género, como Gregory Crewdson – e, na minha opinião, também mais interessante. No entanto, ao olharmos para esta amostra de imagens no MAAT, percebemos que as fotografias da última década são tendencialmente mais estilizadas, formais e rigorosas, com uma maior contenção dramática do que as anteriores. Creio que se possam considerar menos documentais, ora quebrando a “imagem unificada”, como em Informant (2023), onde a sobreposição lembra uma estética de dispositivo digital, ora dando espaço à narrativa e introduzindo duplos num exercício Gurskiano, como em The Gardens, o enorme tríptico em destaque na exposição.
Se esta flexibilidade com a realidade existe de forma cada vez mais veemente e se o espectador não parece ser afetado com esse distanciamento, será possível admitir que a forma como a imagem se apresenta se tenha tornado mais determinante do que o modo como foi feita? A força das imagens de Wall – e da fotografia tableau em geral – reside menos na sua fidelidade a uma realidade observada e mais na forma como se impõem como imagens construídas. O seu impacto resulta de um dispositivo expositivo que reivindica atenção, escala, unicidade e permanência. Neste sentido, essa distinção entre documental e ficção torna-se menos relevante do que o modo como cada fotografia se comporta no espaço expositivo – esse é o espaço essencial do género e a forma que o aproxima da pintura ou da escultura, como propôs Fried.
Se o modo de apresentação se sobrepõe ao modo de produção – e se a autoridade da imagem depende mais da sua forma e inscrição institucional do que da fidelidade ao real –, então talvez não seja absurdo perguntar: se uma imagem gerada por IA for construída e apresentada sob o mesmo regime expositivo, poderá provocar a mesma experiência estética? E, nesse caso, deixará mesmo de depender dos modos tradicionais da fotografia para existir? Porque, com a evolução da IA – através do treino a partir de milhões de imagens –, prevê-se que este problema seja meramente conceptual – algo que nunca deixará de ser uma questão para Jeff Wall.
Corria o ano de 2009, quando, numa entrevista à Aperture[iv], Michael Fried critica Gursky por ultrapassar a linha que faz da sua atividade fotografia. Segue-se uma questão importante: “Não seria interessante se, numa futura era digital, a ideia de que a fotografia é um ‘índice’ ou um desenho de luz deixasse de ter grande relevância?". Ao qual este responde: “Seria interessante. Mas o que não está claro é o que poderá significar, nessas condições, o próprio conceito de fotografia e do fotográfico. Pode vir a tratar-se da evolução de um conjunto de procedimentos tecnológicos para produzir artefactos grandes, planos e ‘representativos’ para serem observados. Mas será que os espectadores começariam a sentir que esses artefactos já não são fotografias? E, se não sentissem isso, importaria realmente para eles? Não faço ideia.”. Talvez tenha chegado a hora de responder a essa questão, no Tableau é claro. Creio que a fotografia de tradição documental tenha outras soluções.
A exposição Jeff Wall. Time Still Stands. Fotografias 1980-2023, com curadoria de Sérgio Mah, está patente no MAAT até 1 de setembro de 2025.
[ii] Esta expressão foi utilizada por Jeff Wall numa conversa no MAAT que antecedeu a inauguração da exposição. A utilização deste juízo valorativo injustificado parte dessa utilização do artista pelos seus próprios critérios. É, no entanto, uma afirmação com que tendo a concordar
[iii] Presente na coletânea de textos do artista publicados pela Orfeu Negro