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Notas sobre uma fotografia acabada
DATA
27 Ago 2025
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AUTOR
Tiago Leonardo
"O trabalho de Jeff Wall sempre esteve ancorado à realidade, recusando a ficção para o definir. O artista explica que todas as imagens nascem de situações reais e que, por isso, estão mais próximas do documental e não tem ambições pictorialistas, mesmo quando inspiradas pela literatura. Recusa o amadorismo, não só enquanto forma de representação, mas também como estética essencial à fotografia".
Não podia deixar de aproveitar a ocasião proporcionada por uma das maiores exposições de Jeff Wall até à data que ocupa todo o edifício do MAAT com um impressionante número de obras (apesar de se fazer sentir a ausência de alguns clássicos) , especialmente quando associada ao recente lançamento em português dos seus Escritos sobre Arte – uma demonstração clara da persistente importância do discurso teórico que sustenta o seu trabalho – para recuperar uma questão levantada recentemente por Dorrell Merritt na ArtReview[i], por ocasião de uma outra grande exposição do artista no White Cube – mas que já tem sido amplamente discutida ao longo das duas últimas décadas: há futuro para a fotografia Tableau?
Faço desde já uma ressalva de que a palavra “acabada” (presente no título) não sugere, por si, qualquer carácter obsoleto no trabalho de Jeff Wall. Refere-se, antes, à sua abordagem consciente da imagem fotográfica como construção final e estabilizada, resultado de um processo controlado de encenação, produção e pós-produção, que culmina num objeto único e definitivo (o que é exposto), sendo que qualquer transição para outro suporte passa a ser uma reprodução, tal como uma pintura. Esta concepção da imagem como artefacto único e estabilizado é central na fotografia tableau mas não se esgota nela.
Longe de pretender uma generalização que reduza o trabalho do artista canadiano ao “modo de apresentação” das suas fotografias, é difícil não o abordar, quando este – entre os outros “suspeitos do costume” como Sherman, Struth ou Gursky – é uma figura central, quase canónica, desse modo de operar que desempenhou um papel decisivo na emancipação da fotografia enquanto “arte” a partir dos anos 80, abrindo portas ao interesse institucional e levantando novas questões e ambições para o medium.
O reconhecimento de que o trabalho de Jeff Wall beneficia, nomeadamente no mercado da arte, deve-se, em grande parte, à partilha da sua fotografia com lógicas da arte não associadas a este suporte, como a unicidade, a monumentalidade e a escassez. Essa decisão implicou um afastamento das qualidades historicamente associadas à fotografia, como a acessibilidade e a reprodutibilidade, às quais se somam hoje outras, talvez mais difíceis de fixar, como a fluidez e a fragmentação que definem a cultura visual contemporânea.
Afastando, desde já, o argumento de uma arte obsoleta critério que só se aplica à “má arte”[ii] - interessa-me pensar se esta perdeu a capacidade de problematizar a forma como a fotografia é exposta. E, mais ainda, se continua a depender da prática fotográfica para existir enquanto linguagem.
O trabalho de Jeff Wall sempre esteve ancorado à realidade, recusando a ficção para o definir. O artista explica que todas as imagens nascem de situações reais e que, por isso, estão mais próximas do documental e não tem ambições pictorialistas, mesmo quando inspiradas pela literatura. Recusa o amadorismo, não só enquanto forma de representação, mas também como estética essencial à fotografia – uma posição central do famoso ensaio Marks of Indiference[iii]. Defende, tal como Michael Fried, que esta postura – assim como a existência de um original –culmina numa aproximação ou elevação da fotografia ao estatuto de arte autónoma, próxima da pintura e da escultura. Não se trata de “usar” a fotografia, mas de fazer fotografia, sendo o artista um operador pleno do processo e das suas intenções. Tal legitimação tem sido verdade, até comercialmente.
No entanto, um género que imita a realidade por oposição à espontaneidade, ao erro ou ao gesto — pode encontrar aqui, a par de outras questões, parecenças com o modo de operar de uma tecnologia em ascensão: a inteligência artificial.
Não pretendo tirar conclusões precipitadas até porque, à data em que escrevo, talvez a IA não tenha ainda capacidade de “imitar” a este ponto. Ainda assim, não tenho dúvidas que, em breve, esta capacidade virá.
Wall é certamente mais contido no seu desapego ao real do que outros fotógrafos do género, como Gregory Crewdson e, na minha opinião, também mais interessante. No entanto, ao olharmos para esta amostra de imagens no MAAT, percebemos que as fotografias da última década são tendencialmente mais estilizadas, formais e rigorosas, com uma maior contenção dramática do que as anteriores. Creio que se possam considerar menos documentais, ora quebrando a “imagem unificada”, como em Informant (2023), onde a sobreposição lembra uma estética de dispositivo digital, ora dando espaço à narrativa e introduzindo duplos num exercício Gurskiano, como em The Gardens, o enorme tríptico em destaque na exposição.
Se esta flexibilidade com a realidade existe de forma cada vez mais veemente e se o espectador não parece ser afetado com esse distanciamento, será possível admitir que a forma como a imagem se apresenta se tenha tornado mais determinante do que o modo como foi feita? A força das imagens de Wall e da fotografia tableau em geral reside menos na sua fidelidade a uma realidade observada e mais na forma como se impõem como imagens construídas. O seu impacto resulta de um dispositivo expositivo que reivindica atenção, escala, unicidade e permanência. Neste sentido, essa distinção entre documental e ficção torna-se menos relevante do que o modo como cada fotografia se comporta no espaço expositivo esse é o espaço essencial do género e a forma que o aproxima da pintura ou da escultura, como propôs Fried.
Se o modo de apresentação se sobrepõe ao modo de produção e se a autoridade da imagem depende mais da sua forma e inscrição institucional do que da fidelidade ao real , então talvez não seja absurdo perguntar: se uma imagem gerada por IA for construída e apresentada sob o mesmo regime expositivo, poderá provocar a mesma experiência estética? E, nesse caso, deixará mesmo de depender dos modos tradicionais da fotografia para existir? Porque, com a evolução da IA – através do treino a partir de milhões de imagens , prevê-se que este problema seja meramente conceptual – algo que nunca deixará de ser uma questão para Jeff Wall.
Corria o ano de 2009, quando, numa entrevista à Aperture[iv], Michael Fried critica Gursky por ultrapassar a linha que faz da sua atividade fotografia. Segue-se uma questão importante: “Não seria interessante se, numa futura era digital, a ideia de que a fotografia é um ‘índice’ ou um desenho de luz deixasse de ter grande relevância?". Ao qual este responde: “Seria interessante. Mas o que não está claro é o que poderá significar, nessas condições, o próprio conceito de fotografia e do fotográfico. Pode vir a tratar-se da evolução de um conjunto de procedimentos tecnológicos para produzir artefactos grandes, planos e ‘representativos’ para serem observados. Mas será que os espectadores começariam a sentir que esses artefactos já não são fotografias? E, se não sentissem isso, importaria realmente para eles? Não faço ideia.”. Talvez tenha chegado a hora de responder a essa questão, no Tableau é claro. Creio que a fotografia de tradição documental tenha outras soluções.
A exposição Jeff Wall. Time Still Stands. Fotografias 1980-2023, com curadoria de Sérgio Mah, está patente no MAAT até 1 de setembro de 2025.
[i] Merritt, Dorrell. Does Tableau Photography Deserve to Survive. ArtReview (Disponível aqui: https://artreview.com/does-tableau-photography-deserve-to-survive-jeff-wall-white-cube-opinion-dorrell-merritt/)
[ii] Esta expressão foi utilizada por Jeff Wall numa conversa no MAAT que antecedeu a inauguração da exposição. A utilização deste juízo valorativo injustificado parte dessa utilização do artista pelos seus próprios critérios. É, no entanto, uma afirmação com que tendo a concordar
[iii] Presente na coletânea de textos do artista publicados pela Orfeu Negro
[iv] Welling, James; Fried, Michael. “Why Photography Matters As Art As Never Before”. Aperture (Disponível aqui: https://archive.aperture.org/article/2009/2/2/why-photography-matters-as-art-as-never-before)

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