Nas duas obras iniciais da exposição Juntos, percebe-se o campo de sinergias e rupturas cultivado pelo casal formado por Helena Almeida e Artur Rosa: em 1971, homenagearam, cada qual numa obra, a estimada pintora do barroco português Josefa de Óbidos. Numa grelha volumétrica de vetores expansivos, Rosa segmenta a pintura O Menino Jesus Salvador do Mundo em diversas profundidades para tanto conservar as hierarquias do original quanto tensionar a rectitude de suas linhas com a volúpia das figuras de Josefa. Já Almeida prefere um diálogo mais livre com a artista: um acervo de esculturas macias que subvertem as composições das obras de Josefa para melhor suscitar a exuberância e desconforto de suas naturezas-mortas, que amontoam bolos e pétalas em cenários de afago infantil e calada hostilidade. Cómodo seria reduzi-los a arquétipos opostos — a lógica meticulosa de um Rosa apolíneo e a experimentação livre de uma Almeida dionisíaca. Mais interessante, e fecundo talvez, será tentar superar a simplicidade dos rótulos para encontrar improviso na lógica e rigor no acaso.
Situa-se, numa das primeiras salas da mostra, uma série de obras precoces de Almeida que, a um olhar desavisado, mais pareceriam de Rosa — embora não operem sob os seus princípios. No geral, o artista atento sabe selecionar os métodos e materiais que melhor alinham-se ao temperamento de sua prática: as obras de um cerebral Rosa decerto seriam mecanismos construídos de forma impessoal, enquanto que as fotografias de Almeida nos apresentam os gestos espontâneos de uma artista experimental. Mas então o que dizer destes Sem Título de Almeida, onde construções em madeira e rigorosas pinturas se opõem à sua costumeira vitalidade? E, no entanto, aqui já revela-se um tema central de sua prática posterior: o transpor das bordas. Em todas elas, explora a arbitrariedade dos recortes e manifesta mais interesse na zona de contacto entre duas entidades do que na perfeição do controle interno, em jogos plásticos que já contêm o espírito de cálculo lúdico presente no período mais maduro da artista. Tempos depois, em Desenho Habitado, argumentará que toda linha reta é imperfeita pois não existe nem suporte impecável, nem sujeito mecânico: desenhamos num mundo de acasos e singularidades, sendo mais rico transitar entre as coisas, costurando fenómenos distintos — o essencial é a tensão: não lhe interessa a liberdade absoluta, mas a experiência mediada pelas circunstâncias, no contacto entre o indivíduo e a alteridade. A sua própria face encontra-se fora da tela em Estudo para Tela Habitada, suspendendo-a não em parede impecável, mas num corpo que se move no mundo e sugerindo que talvez o mais importante esteja fora do recorte.
Já em Rosa não há mediação, pois não há acaso — apenas causalidade. Mais clássico que Almeida, interessa-se pelas proporções que outrora nos ilustravam a harmonia de um cosmos estável. Embora sobretudo abstrato, na série Linguagem Logarítmica serve-se da fotografia sem cores preferida por Almeida não para fotografar performances, mas para dialogar com o espaço matemático renascentista. Suscita talvez o olho solitário de Alberti que, situado até à janela pictórica, contempla uma cena de composição impecável, o cosmos organizado pelo intelecto. Mas em Rosa a grelha perfeita que de nós emana não é fixa, mas móvel, projetando-se como uma cascata de sólidos: abandona a malha linear da perspectiva clássica, com suas formas imutáveis, pela malha logarítmica, de expansão multiplicativa e que melhor representa a física moderna e seu universo em perpétua expansão. Do cosmos fechado ao universo aberto, da composição ao ritmo.
Tal dispersar, de facto, impediria a coesão clássica — mas Rosa não aceita nem o imprevisível nem a entropia: quem o faz é Almeida, que entende o recorte como um convite à transgressão. Ele é mais científico, seus enquadramentos criam ambientes controlados onde o intelecto opera sem o empecilho do acaso. Para Almeida, o movimento é o motor da mudança. Para Rosa, o revelar das condições do ambiente, suas causas e efeitos. Daí seu interesse pela geometria, pelos corpos reduzidos à lucidez intelectual e por ela manipuláveis de forma clara, enquanto Almeida prefere o corpo humano como o lócus da experiência total. Não há surpresas no ambiente de Rosa — apenas uma imperturbável sucessão. Mas ainda assim poderia promover a dispersão final. Ao invés, opta por reforçar a coesão: suas trajetórias são cíclicas pois os sólidos, depois de torcidos, retornam à concisão. Tal gesto pendular, e replicável, quase me lembra mais o cosmos grego apropriado pelo Eterno Retorno de Nietzsche que a concepção moderna do universo. Em muitos de seus títulos, já adianta a conclusão lógica do gesto: Da Reta ao Triângulo. Mesmo quando se permite sobrepor limites, fá-lo de maneira lógica, como em A Pirâmide e o Papel Cortado, onde os cortes no papel respeitam uma ordem escalonar, de linha a linha. Rosa atualiza, mas talvez não subverta o espaço lógico renascentista, pois não parece querer abdicar do controle absoluto.
Já em Ouve-me também Almeida trabalha um sistema fechado, mas apenas para expandir, num processo experimental, a elegante silhueta fabricada pelo sujeito solitário, aceitando o acaso que inclusive advém dos íntimos em diálogo: nesta obra são os sopros do casal que corrompem a figura. Pois se para Rosa os limites são o fim, para Almeida são apenas o começo. Em Saída Negra explora a indistinta corrente que emana do humano, moldável apenas em parte, que ao fim marca-nos de volta.Em Mão atravessada por uma caixa, um golpe destrói a frágil geometria de uma caixa de papel — a experiência livre do gesto expressivo supera a imposição intelectual. Mas, ao fim, a mão encontra-se amarrada pelo fio que delimitava as arestas da caixa — também o sujeito é transformado pela experiência, pois em Almeida a ação não é impositiva, mas mediada: o seu interesse é o proveitoso contacto entre figura e fundo. A parede é um plano expandido, e os rodapés, suas margens — daí o seu interesse em explorá-los na performance: a existência do indivíduo altera todos os limites. Não há fora, pois tudo está dentro, o humano altera e é alterado pelo entorno e toda linha é a margem entre o que somos e o que podemos ser. E se a realidade do indivíduo é a experiência, mais verdadeira que a silhueta da face é o gesto da mão: em Dentro de Mim Almeida revela o próprio rosto com uma pincelada. Já Rosa, em seu Auto-retrato, não tanto oculta quanto simula turvamentos. A fragmentação da silhueta parece sugerir-nos a sua gestalt, ou imagem total, a partir dos pedaços. Aqui não vejo o imponderável, mas justo a clareza mental da imagem sugerida.
A experimentação pressupõe uma ausência de objetivos claros enquanto o intelecto emancipado é um projétil que, na busca pelo desfecho eleito, tudo articula entre causas e efeitos. E, no entanto, também Rosa, em certas obras, não tanto aceita o acaso quanto mantém-no como possibilidade: em Evolução, um mecanismo ainda não acionado recolhe-se na latência de suas possibilidades — o seu movimento seria alterado pelas circunstâncias ou cortaria, implacável, os arredores? Poderia este grânulo de dúvida diminuir a exatidão costumeira de Rosa? Talvez não haja, de facto, grande diferença entre o estudo e o jogo, ou entre o intelecto e a vivência, pois o importante, como o disse Longinus, é o talento: aquilo que se aprende sem ser ensinado, na sistematização da experiência. O artista é quem sabe atentar à própria vida, pois a arte não é como a ciência — não busca a verdade objetiva, mas a experiência subjectiva de uma verdade. Talvez então Rosa seja como Almeida, no fundo: sua arte é a experiência dos seus princípios, em movimento. Estaria ele performando com a geometria? Neste sentido, quase o vejo mais descontraído que Almeida, pois a ela cada gesto é da maior importância — estuda as possibilidades do humano num mundo de acasos e limites. Desde o princípio, quando ainda se dedicava a uma prática mais geométrica, Almeida ponderava a importância da lógica num mundo onde cada espaço conserva condições particulares ao humano — talvez precisasse partir de uma lógica duvidosa para depois atingir uma dúvida significante, enquanto Rosa talvez prefira os deleites de uma matemática de simulacros impecáveis e impactos ópticos que não se importam tanto com a validade das premissas racionais.
Além de Juntos, completa o espaço expositivo da CAV a mostra Eu paisagem, de Andreia Nóbrega. Embora sejam duas mostras distintas, é possível exercitar reveladoras semelhanças entre os três artistas. Os panoramas longitudinais de Nóbrega desenrolam-se, extensos, como o resultado de uma experiência contínua que entende a paisagem sobretudo enquanto acervo de padrões, articulando o desenrolar da vegetação quase com uma lógica têxtil, de tapeçarias, onde a lenta adição de unidades sugere malhas não ao todo distintas das manchas gráficas da op-art por vezes privilegiadas por Rosa. Percorrer as suas obras é perceber câmbios rítmicos, mas aqui há mais naturalismo, mais permissividade, menos domínio intelectual. Em Nóbrega há intuição no controle, e o impacto que sentimos ao contemplar as suas paisagens é justo o do encanto pela tensão, jamais resolvida, entre a possibilidade de ordem e a imposição do caos. Nisto, e embora distintas, reconheço uma semelhança ao menos com o temperamento de Almeida: a experiência contínua do artista que busca aquilo que é apenas verdadeiro por jamais ser, por inteiro, resolvido.
As exposições Juntos e Eu paisagem têm curadoria e textos de sala de Miguel von Hafe Pérez e estão patentes no CAV de Coimbra até o 7 de setembro.