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Reabrir, revisitar, reutilizar, repensar e reparar: a política dos “r” em quatro exposições na Fundação Eugénio de Almeida
DATA
29 Abr 2025
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AUTOR
Vasco Luis de Mello
Beatriz Colomina, em conversa com Hans Ulrich Obrist sobre a importância dos Arquivos dizia: “Archives are spaces for new ways of seeing and new ways of thinking”. Uma ideia seminal que parece aglutinar as quatro exposições patentes na Fundação Eugénio de Almeida, em Évora.

Beatriz Colomina, em conversa com Hans Ulrich Obrist sobre a importância dos Arquivos (Future of Archives – uma série de diálogos promovidos pela Norman Foster Foundation), dizia: “Archives are spaces for new ways of seeing and new ways of thinking”[1]. Uma ideia seminal que parece aglutinar as quatro exposições patentes na Fundação Eugénio de Almeida, em Évora. Consultando o dicionário de língua portuguesa para a definição da palavra “arquivo”, lê-se o seguinte: (1) lugar ou edifício onde se guardam documentos; (2) conjunto de documentos conservados e geralmente organizados; (3) secretaria, cartório; (4) móvel, geralmente com gavetas ou compartimentos, destinado a guardar ou arquivar documentos (arquivador); (5) pessoa de grande memória. Vejamos como se manifesta em cada uma das quatros exposições. No piso térreo, Corpo-Ilha de Jacira da Conceição e Believe de David Infante. Na planta intermédia, Ana Vidigal com Histórias de Família, e, por fim, no último piso, Abrigo de Combatentes do artista espanhol Eugénio Ampudia.

Arquivo biográfico;

Corpo-Ilha de Jacira da Conceição, com curadoria de Teresa Veiga Furtado, é um autorretrato onde a artista reclama (construindo e refundando) a sua própria narrativa na história da diáspora africana e nas estórias, que apenas o arquivo vivo oral da memória coletiva conta. Três movimentos, ou três vídeos performance dão o título à exposição (Corpo Ilha – Três Movimentos, 2025). Neles, tal como na restante exposição, entre cerâmicas e a fotografia, a artista explora a sua herança insular: a memória das mulheres cabo-verdianas, testemunhos de emigração, resistência feminina e igualdade. Destaca-se a série Silhuetas (2024), entre gestos de barro (Guardiãs, 2022 e Sobreviventes, 2024) e outros movimentos sincronizados com o mar (“a água” – a que Gaston Bachelard dedicou um livro sobre o sonho e o inconsciente). A composição de quinze fotografias polaroides, imagens em alto contraste que cruzam contornos femininos com textos, desafiam a narrativa dominante de perceção e categorização do ser humano pela sua cor. Lê-se em modo afirmativo: “a mulher artista negra afirma-se neste mundo sabendo que a sua cor de pele chega antes de ela própria!!!”. Nos nossos contrastes e limites de contorno, como ilhas e ilhéus, somos apenas silhuetas e perfis sem cor. Jacira da Conceição está pronta a revisitar o arquivo da história com a mesma importância que o arquivo das estórias orais.

Arquivo monográfico;

Believe, de David Infante, com curadoria de Diogo Ramalho[2],  é também uma procura de identidade. Seja esta uma autorrepresentação, consciente e reflexiva, seja uma representação subconsciente, onírica e ficcionada. É difícil, talvez pelo recente desaparecimento de David Lynch, entrar na galeria e não sermos contagiados pelo confronto, entre o vermelho da parede do fundo, e os claros-escuros, até negros, das abstrações (bizarras) analógicas 1×1. Um formato banalizado pela frenética partilha de conteúdos nas redes sociais, mas que Infante resgata confortavelmente para as paredes da Fundação Eugénio de Almeida. As fotografias são na sua maioria monocromáticas e os temas oscilam entre uma imagética surreal e a memória. O fotógrafo documenta mundos paralelos, onde crenças, estranheza e uma certa religiosidade popular existem – diríamos também existem, embora deste lado da tela esteja em vias de extinção. A(s) narrativa(s) de David Infante têm um tempo indeterminado, definido entre pretéritos e posicionam-se geograficamente entre a ficção e o real; fazem-nos desconfiar e depois querer acreditar que são álbuns de família. Essa é também a proposta: acreditar, querer acreditar, crença. Believe é também uma publicação de fotografia na era digital, por isso é um arquivo antológico de 15 anos de trabalho.

Arquivo morto (ou familiar);

Subindo ao piso 1, Ana Vidigal apresenta Histórias de Família, com curadoria de Patrícia Reis. A proposta da artista é um exercício íntimo de desvelar para revelar – ou vasculhar. É, em simultâneo, uma exposição lúcida do papel comum que a individualidade representa na história coletiva portuguesa e nesse sentido pode ser vista como um ato político. Nas várias sucessões de salas, a artista percorre mais de quatro décadas de trabalho, evocando memórias de infância com reminiscências de um passado colonial e pós-colonial: resenhas infantis da popular história do “Bambi” sobre polaroides, mesclam-se com objetos familiares e domésticos, mobiliário, arquivos e arquivadores, gavetas e gaveteiros, pertences, cartas, revistas, cortes e recortes, babetes estampados, transferências e transparências sobre lençóis, uma cana, objetos trazidos pelo mar ou pescados da areia… Tudo é material para uma colagem. Tudo é um pretexto para uma reutilização ou reconciliação emocional com o passado. Ana Vidigal mostra como é importante revisitar uma vez, outra vez e várias vezes o arquivo. Não necessariamente os institucionais, mas a gaveta da mesinha de cabeceira, onde se guardam narrativas individuais que reconhecemos também como as nossas — “lá de casa”. Revisitar o arquivo é colocar em perspetiva a história, possibilitando outras histórias.

Arquivo vivo (ou botânico);

Subindo ao último piso da Fundação, o último das quatro classificações que inventamos para o arquivo. Abrigo de Combatentes de Eugenio Ampudia, com curadoria de André de Quiroga, resulta de uma parceira entre a FEA e a Mostra Espanha (bienal de arte e cultura espanhola). A peça que dá o nome à exposição é figura de visita. Abrigo de combatentes (2014) lê-se sobre três réguas dobráveis de madeira (metros). Três linhas quebradas desconstroem o sentido da palavra. O objeto faz parte de uma série intitulada Tomar medidas questionado o poder da palavra (do discurso e do binómio emissor/recetor) na definição das narrativas. Entramos axialmente na exposição, numa das três salas principais que constroem a curadoria e vemos uma escultura cinética composta por ramos e folhas (réplicas de folhas fundidas a bronze). Lembramos Alexander Calder e os seus “mobiles”, numa dicotomia cultura/natureza. Somos Aquello que Dejamos de Ser (2023) tem especial protagonismo e é o fio condutor, ou a ponta do novelo que Ampudia desenrola nas restantes salas. Primeiro uma série de desenhos (Los Nuevos Salvajes, 2023) compostos por elementos naturais, tais como ramos, folhas, carumas, musgos e palavras. Depois, uma sucessão de vídeos com som, em diálogo com fotografias de grande formato. Do lado esquerdo, uma fotografia do concerto no Teatro do Liceu de Barcelona (Concierto para el Bioceno, 2020), onde a plateia são 2292 plantas convidadas, está lado a lado com um vídeo-concerto também para plantas, mas na Estufa Fria de Lisboa (Concierto para Plantas, 2023. Neste díptico, chamemos-lhe assim, Ampudia invoca o desejo humano de compreender, conectar-se e viver com outras espécies, numa cooperação interespécies. A mesma coexistência pernoita, com ironia e até humor, música erudita e um saco-cama, dentro das instituições, seja a biblioteca ou o museu. A série Dónde Dormir 4 (Biblioteca Nacional do Palácio da Ajuda, 2014) e Dónde dormir 1 (Museu Goya, 2008), são exemplos claros desse interesse de Ampudia por desafiar o diálogo entre a cultura e a natureza, e, se assim o entendermos, entre o arquivo morto e o arquivo vivo, o arquivo e o contra-arquivo.

Concluímos a nossa visita, descendo aos pátios aromatizados pelo jasmim em flor que desperta, procuramos sombra nas Casas Pintadas, e pensamos que este também seria local para uma pequena sesta, sob o olhar atento de um arquivo mural de pinturas profanas.

Na Fundação Eugénio de Almeida, Corpo-Ilha está patente até 18 de maio; Believe, até 19 de outubro; Histórias de Família, até 11 de maio; e Abrigo de Combatentes, até 15 de junho.

 

 

[1] “Os arquivos são espaços para novas formas de ver e novas formas de pensar.”

[2] Diretor da Plato, um projeto descentrado e focado em artistas emergentes com poiso em Évora e no Porto.

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