Há caminhos-deambulações que se lêem na tessitura do espaço-tempo.
Sérgio Carronha propõe-nos esse exercício através da experiência sensorial de Perpétua.
No percurso, há pistas, resquícios, objectos que nos indiciam a vida em devir.
A errância manifesta-se no reconhecimento dos ritmos da natureza, nas suas repetições na paisagem, incorporando a magia do lugar e transformando-a em objectos simbólicos.
O artista confia no seu corpo como agente primordial de orientação, deixando-se imergir pelo leito do rio, pelas ribeiras secas, escondidas como pontos de humidade que teimam em estar presentes nas profundezas da terra.
Diz-nos Eliade[1] que o rito e o símbolo expressam o reconhecimento humano da realidade última no Cosmos. Por este motivo, em cada elemento que nasce desse exercício ritual, o mundo real e o sagrado imiscuem-se, sem fissura possível entre mundos.
Para além da água – que se expressa aqui como substância invisível que evaporou por ação do fogo sobre o barro, como atmosfera que nutre a respiração, ou ainda, como espaço intangível no qual navegamos entre as obras – há os pontos sagrados que nos levam ao registo da montanha, do Sol, do sentido Norte que conseguimos perscrutar na paisagem, e depois, mapear sobre a pedra.
Que indícios encontramos? Qual o sentido de existência de um corpo que atravessa o espaço consciente da sua mortalidade?
Perpétua renasce, mas a terra dá lugar ao cimento. Outros tempos reemergem, moldando ambas as matérias ancestrais e antropogénicas.
Água, Terra, Ar, Fogo.
Extração, Trituração, Aquecimento, Pó de Gesso que, ao adicionar água, endurece e envolve o corpo nascente de Perpétua. Sobre a pele, pontilha-se o pigmento ocre da montanha escavação, indissociável, na obra de Carronha, da ação mágica e protetora dos ritos funerários, morada dos mortos revestida pelo sangue da terra.
Transformação, aprofundamento da techne. Do húmus, extrai-se a pedra, e a mesma é queimada a elevadas temperaturas, provocando alterações químicas que transformam o calcário e a argila em clínquer, pequenos nódulos cinzentos que ao serem moídos, se adicionam ao gesso e a pozolanas, ou a escórias, formando o pó do cimento. Memória mineral transfigurada. O rosto de Perpétua renasce subtilmente. Não vemos ainda as suas estruturas anatómicas definidas. No entanto, há algo que emerge, uma presença que o artista ancora no espaço-tempo.
Entre a matéria geológica e industrial, os processos reconfiguram-se, não por oposição, mas no sentido da complexidade. Se, por um lado, há o processo de milhões de anos, sob altas pressões e temperaturas em profundidade, que levam à metamorfose do calcário em mármore, por outro, há o tempo comprimido pelo fogo industrial. Essa compressão conduz à aceleração exponencial da transformação material, e expande-se para os processos globais que nos levam ao limite da capacidade de compreensão da natureza do objecto. Pois, a matéria advém hoje de inúmeros territórios, de montanhas e rios que se entrecruzam sem vestígios do lugar.
Retomamos o princípio, o sentido de descoberta do Axis mundi de Carronha – Perpétua, Mapa, Rolo, Rede, Norte, Renascimento, Porta, Exaustor, Sol – as palavras que nomeiam o contacto com a obra e os objetos-vestígios da caminhada.
O espaço revela-se e o corpo habita-o, atravessa o tempo, reencontrado a sua condição nómada, ancestral.
A exposição Perpétua, de Sérgio Carronha, está patente na Galeria Monitor até dia 10 de maio.
[1] Mircea Eliade, O Mito do Eterno Retorno, Lisboa, Edições 70, 2019 (1949 ed. original)