Um dia, ao colher um grande cacho de uvas, aperta-o ao peito para o segurar melhor, e o sumo das uvas escorre, doce e aromático, pelas suas mãos sôfregas. (...) Uma ligeira, uma alada embriaguez o toma, o sangue bate-lhe mais depressa no coração entusiasta, a sua energia multiplica-se.1
A passagem de Deuses do Olimpo (1936) descreve a sensação de Dioniso ao deparar-se com a transformação da matéria, descobrindo a fermentação da uva. O êxtase que dele toma conta ao provar o sumo translúcido que escorre da fruta me faz pensar na epifania dos encontros e descobertas que ocorrem durante os processos e experimentos artísticos. Uma espécie de embriaguez.
Reservoir, individual de Gabriel Ribeiro na Galeria Foco, condensa uma série de camadas. Na interseção entre fotografia e escultura, o artista investiga a transformação da matéria, trazendo à superfície a capacidade que certas composições, substâncias e materiais têm de reagir à temperatura, à luz solar e ao tempo. As imagens são produzidas na ausência do aparato óptico convencional: fotogramas, cianotipias, impressões solares e processos em que a luz, o calor e a passagem do tempo tornam-se agentes determinantes. Entre dois segundos e dois meses, essa é a variação do tempo de exposição dos processos fotográficos presentes em Reservoir.
Vestígios de uma reunião dionisíaca em Afters (2025) dão início ao inebriante circuito. Na instalação, uvas e passas espalhadas pelo chão, copos caídos, canudos mordidos e os contornos já secos do líquido escorrido manifestam memórias de um acontecimento, uma cena se faz presente em sua ausência. Em Refill (2025), garrafas vazias remetem a uma fonte que se esgotou e, pelas gretas do bebedouro, uma surpresa. A obra aponta para conceitos e temas abordados durante a exposição, como a deflação e a ideia do esvaziamento - esse movimento em que o corpo sucumbe, afunda em si mesmo, desidrata - e à presença, ainda que marcada pela ausência, da água e da forma como ela é conduzida.
Na pilastra, uma espécie de ampulheta remete à passagem do tempo: em Still Water, duas garrafas se conectam por uma abraçadeira metálica enquanto Urethra (2025) dialoga diretamente com o que se vê ao fundo. Conduit I e II são como radiografias, revelando a estrutura interna dos objetos. A aproximação com a anatomia e os mistérios do interior do corpo apresentam uma lógica biomórfica em que corpo e mundo se sobrepõem. Ao relacionar a anatomia humana com a infraestrutural - o que está por trás das paredes dos prédios, as tubulações e sistemas de filtragem - Reservoir traz, nesta compreensão de dentro para fora, os fluxos que atravessam nossos corpos e os fluxos que sustentam edifícios e cidades.
Em diálogo com as particularidades do espaço, um laboratório onde os objetos de estudo se reconfiguram em diferentes esquemas evidencia sistemas estruturais e nos coloca em contacto com a ideia de circulação. Ao encontrar o elevador que liga os dois andares fechado, vemos um fio quase imperceptível que o atravessa e só é possível saber o que o sustenta no andar de baixo. Desço as escadas atraída pelo azul vibrante de Deflator (2025), o único cianótipo impresso em algodão, envolvente em suas tramas. A seguir, muito próxima ao chão, está Grape (2025), a girar vagarosamente, no compasso de um tempo dilatado.
Reservoir é dividida em dois momentos. “Como se o andar de cima, com a grande incidência de luz natural, fosse uma superfície mais reflexiva, a uva, e no andar de baixo, sob o teto mais baixo e com a iluminação reduzida, tudo se torna mais denso e opaco como a passa, resultante do processo de desidratação”, revela o artista. Aqui a garrafa dá lugar ao cesto, que tece uma ambiguidade entre contenção e passagem a partir de sua estrutura elementar, sendo este também um dispositivo de armazenamento e transporte de energia. Relações entre peso e leveza e luz e sombra destacam-se neste segundo momento. Lembro-me do Baco (c. 1595), de Caravaggio, que seduz o espectador enquanto o aspecto das frutas já não tão frescas no cesto à sua frente revela a ação do tempo sobre a matéria. Existe um autorretrato de Caravaggio escondido nessa pintura. Também em Reservoir há indícios sutilmente ocultos.
Horn of Plenty (2025) traz a cornucópia — símbolo de abundância, frequentemente representado na história da arte com uvas, frutas e flores — disposta sobre um desidratador industrial. A obra contrapõe a manipulação e o controle da matéria ao seu comportamento orgânico e espontâneo de transmutação, tensionando noções de plenitude e esvaziamento, integridade e decomposição. Por fim, em Sun-maid I e II (2025) - impressões solares em espuma - a exposição reafirma o limiar especulativo da investigação de Gabriel Ribeiro, que articula o gesto consciente e apurado ao que escapa ao domínio, ao que é intuitivo e imprevisível.
Reservoir está patente na Galeria Foco até dia 25 de outubro de 2025.
1 BARROS, João de. Deuses do Olimpo e Heróis da Grécia Antiga. Lisboa: Clássica, 1936.