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Salon/Ensaio – Arte na Intimidade
DATA
19 Mai 2025
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AUTOR
Joana R. Sá
Num apartamento em Belleville, no 20e arrondissement de Paris, nasceu o Salon/Ensaio. A ideia por detrás deste projeto, inspirado nos salões artísticos e literários dos séculos XVIII e XIX, seria proporcionar um espaço simultaneamente íntimo e propício ao convívio, à socialização e à troca de experiências artísticas.

Quais são os espaços em que a arte se pode expandir? De que modo a proximidade influencia a relação artista-público?

Com a crescente crítica e questionamento sobre a inacessibilidade e comercialização dos museus e galerias, surge cada vez mais uma necessidade de espaços alternativos onde se possa criar e mostrar arte livremente.

Em resposta a esta problemática, o casal de artistas Ângelo Ferreira de Sousa, artista plástico, performer e tradutor literário, e Olivia Gutherz, música especializada no violoncelo barroco e na viola da gamba, com uma paixão pela improvisação livre, criaram o seu espaço artístico, na sua própria sala de estar.

Num apartamento em Belleville, no 20e arrondissement de Paris, nasceu o Salon/Ensaio. A ideia por detrás deste projeto, inspirado nos salões artísticos e literários dos séculos XVIII e XIX, seria proporcionar um espaço simultaneamente íntimo e propício ao convívio, à socialização e à troca de experiências artísticas. O Salon/Ensaio surgiu como resposta à necessidade de encontrar uma alternativa à rigidez dos processos burocráticos das instituições culturais, e sobretudo, de criar um espaço onde os dois artistas pudessem articular as suas diferentes vertentes artísticas. Nas palavras de Ângelo: “Começámos a procurar maneiras de ter um projeto coletivo. Como eu não sou músico, como é que eu poderia participar nas performances dela?”

O salão, que já vai na 8ª edição, recebe uma multiplicidade de formas artísticas, desde escritores, artistas plásticos, músicos e cineastas. Além de Ângelo e Olivia, entre os artistas que já se apresentaram no Salon/Ensaio, encontram-se a artista visual portuguesa Carla Cruz, o escritor francês Mathieu Larnaudie e a artista sonora estadunidense Melissa Van Drie. A par destas participações, decorreram já várias colaborações com a editora MF, da qual diversos autores apresentaram os seus livros e organizaram sessões de leitura.

O que torna um espaço tão propício à exploração artística? A imersividade e conforto de um espaço doméstico? A distância da vertente comercial das galerias e outras instituições onde a arte se torna performática, tornando-se uma resposta à demanda do consumidor, e não mais uma resposta à necessidade de criar do artista?

A domesticidade não se aplica apenas ao local, mas também ao próprio processo da performance artística. O Salon, por um lado, permite aos artistas uma maior exploração das suas práticas criativas, através da liberdade para experimentar, improvisar e apresentar obras que, por uma razão ou outra, dificilmente seriam aceites nos espaços culturais tradicionais. Ainda que se trate de um espaço doméstico, é também importante destacar a componente do público. É precisamente o facto de a relação performer-espectador não ser descurada que permite a existência da dinâmica necessária para a funcionalidade destas apresentações ao vivo.

As edições anteriores, por exemplo, têm contado com um concerto de música improvisada por Olivia, que reforça a ideia desta iniciativa como um momento dedicado à criação experimental e à expansão da nossa conceção muitas vezes demasiadamente clássica das práticas artísticas.

Como descreve a biografia da página instagram do projeto: “Notre salon s’ouvre aux expériences artistiques et littéraire en intimité” (“O nosso salão está aberto às experiências artísticas e literárias em intimidade”).

Outra vertente que possibilita o Salon é o facto de Ângelo e Olivia morarem num atelier logement, um apartamento insonorizado subvencionado pela Câmara Municipal de Paris para músicos profissionais. Neste caso, esta iniciativa pública de alojamento permite não só desenvolver livremente a sonoridade das performances e apresentações, mas também o horário noturno do projeto, que não seria possível manter num edifício sem insonorização com múltiplos habitantes.

No que toca aos convidados, tanto os artistas como o público são conhecidos do casal – inicialmente, sobretudo amigos e próximos, com o passar das edições, cada vez mais pessoas diferentes se juntam. Segundo Ângelo: “As pessoas que vêm muitas vezes não são as mesmas. Os habitués são relativamente poucos. Porque as pessoas em Paris têm mais coisas que fazer, há muita oferta cultural, a cidade é grande e as pessoas raramente estão disponíveis, por isso o público que vem é muitas vezes variado.” Acrescentando: “As pessoas gostam tanto desta ideia da proximidade que nos propõe sempre outras hipóteses de mostrar o trabalho deles, vencendo barreiras de timidez e de inseguranças.”

O destaque do fator “íntimo”, que um espaço como o Salon/Ensaio propõe, é cada vez mais essencial, e não é um problema apenas dos dias de hoje. Num museu, existe uma distância tanto mental como física entre o espectador e a criação, uma distância que pode ser desejável em certos casos, criando um pedestal na forma como um indivíduo consome a arte que observa. Arte é curada para ser consumida de uma maneira específica, com um tal nível de separação que cria uma hierarquia. Ao nível dos museus, esta hierarquia não abrange apenas o observador, mas também o artista, condicionando e influenciando todos os processos desde a conceptualização, à seleção e ao momento de exposição.

Nos anos 70, a artista plástica e escritora japonesa Yayoi Kusama, num texto sobre o MET Museum em Nova York, “Museum Politics”, escreveu: “O interesse público pela arte aumentou e a afluência aos museus cresceu significativamente, mas a arte apresentada é selecionada em função do prestígio e do benefício financeiro dos mais ricos em vez de ter em conta as pessoas como um todo.” (tradução nossa, original exposto na exposição “Yayoi Kusama: 1945 – Hoje”, Museu de Serralves, 2024)

Outras preocupações que podem ser levantadas relativamente ao profundo enraizamento do capitalismo nos espaços culturais são a “sanitização” da arte, a censura, e o próprio processo de seleção.

Outra faceta deste projeto é a coabitação de duas nacionalidades, correspondentes às origens dos seus organizadores. O título do projeto – Salon/Ensaio –  é já uma junção das duas línguas: francês na palavra salon, que significa “sala de estar” e faz uma referência aos salões artísticos em que se inspira; e ensaio, palavra portuguesa que descreve um exercício de treino artístico e que, neste caso, alude à natureza experimental do salão e ao ato de praticar.

A ideia da tradução e da junção das duas línguas revelou-se, desde cedo, um ponto importante deste projeto. Um exemplo desta comunhão linguística foi a performance apresentada pela artista portuguesa Carla Cruz, na 8ª edição do salão (12/04/2025), em que uma das componentes da apresentação consistia na declamação de poesia portuguesa, acompanhada pela projeção da tradução francesa dos poemas.

É através do diálogo entre áreas artísticas que a criação aliada à espontaneidade troca a sua persona distante, transformando-se numa experiência compartilhada. Como referido pelo Ângelo: “O facto de estarmos em nossa casa, de ser um apartamento, e de as pessoas que vêm serem nossos convidados, a proximidade é tão real que muitas pessoas que nunca se atreviam a fazer questões e a intervir, agora fazem-no porque essa proximidade o permite. E nós compreendemos que nesta dinâmica há uma verdadeira força revolucionária, uma resistência face a um certo status quo cultural.”

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