Acontece em Porto Alegre (RS – Brasil) a décima-quarta edição da Bienal do Mercosul (até 1 de junho), chefiada por Raphael Fonseca (curador do setor Arte Latino-Americana no Denver Art Museum, em Colorado, EUA) juntamente com os curadores Thiago Sant’Ana e Yina Jiménez Suriel, cujo título, Estalo, se refere às mais amplas margens de mudança e às possibilidades de encontrar novos percursos além das rotas convencionais.
Relata Fonseca: «Nos meus projetos, sempre gosto de usar apenas palavras singelas, por manterem uma abordagem acessível para todos, inclusive para quem não pertence à área da arte contemporânea. Estalo veio à mente de uma forma muito natural e imediata, observando um homem batendo um leque no ar: esse “som” representa um movimento multidirecional, como a chuva que cai em toda parte. Uma imagem perfeita, inclusive para evitar uma construção teórica demais fechada».
Nunca nome foi mais acertado: adiada seis meses por causa da enchente que, em maio de 2024, deixou um rastro de destruição na cidade gaúcha, com cerca de 400mil moradores desabrigados e mais de 180 óbitos, a Bienal – conforme aos desejos dos curadores, não se queria posicionar como uma reminiscência do que se passou, nem utilizar a tragédia como material poético. Muito pelo contrário, nos 18 espaços espalhados pela metrópole sulista a compor o arquipélago da Bienal enxergam-se pinturas, instalações, esculturas e trabalhos específicos investigando temas transformadores, de metamorfose, de mudança, por um total de sessenta obras comissionadas pela Bienal, com 77 artistas convidados.
Do desafio de trabalhar com projetos que foram selecionados antes do desastre e que sofreram adaptações ao longo do tempo da preparação da manifestação, fala Thiago Sant’Ana: «Obviamente, a produção de trabalhos inéditos gera um alto nível de imprevisibilidade sob diversos aspectos: gerencial, conceitual, técnico. Mas, ao mesmo tempo, é um privilégio poder usar esta Bienal como espaço de experimentação, um lugar para criar novas experiências — especialmente considerando que praticamente todos os artistas não brasileiros convidados para Estalo nunca haviam exposto no Brasil antes».
O resultado? Uma Bienal coral, onde todas as produções mantêm uma conversa entre elas, mesmo quando realizadas com técnicas e intenções diferentes. Merece uma visita atenta a seção da Bienal na Fundação Iberê Camargo: “Em um estalar de dedos, você acordará de um sono profundo”. Dedicada a um dos grandes nomes da arte brasileira do século XX, a Fundação Iberê é também um marco arquitetônico da cidade de Porto Alegre, além de ser o único edifício criado por Álvaro Siza na América Latina, cujo projeto ganhou o Leão de Ouro na Bienal de Arquitectura de Veneza, em 2002. O percurso, aqui, abre-se com a grande dança de esculturas em madeira de Zé Carlos Garcia (1973), uma série de figuras híbridas e difíceis de serem classificadas, em perfeito diálogo com as pinturas e os desenhos de Camargo.
Subindo para outros andares: as cerâmicas de Darks Miranda (1985), pondo em luz universos fantásticos, e aquelas de Julia Isídrez (1967), artista paraguaia que trabalha com a galeria Gomide & Co. e já exposta na Bienal de Veneza de 2024 e na dOCUMENTA 13, entre outras exposições internacionais. Destacam-se as grandes pinturas íntimas e oníricas de Maya Weishof e de Letícia Lopes (1988), onde se misturam borboletas e símbolos ancestrais, figuras negras de felinos em simbiose com silhuetas femininas, máscaras, atmosferas rarefeitas e sonhadoras. Do lado, Rodrigo Cass (1983), representado pela galeria Fortes D’Aloia & Gabriel, apresenta uma das instalações mais curiosas desta Bienal: misturando vários meios, o artista cria polígonos tridimensionais que abrigam neles breves vídeos que revelam imagens destoantes, enquanto as “caixas” interagem com os ângulos, as perspectivas, os cheios e os vazios dos espaços da Fundação, refletindo sobre as identidades da linguagem e suas ambiguidades.
Mas a Bienal, conforme as palavras da sua Presidente, Carmen Ferrão, escolheu também lugares fora do centro histórico de Porto Alegre para alcançar outros públicos: «Reorganizar a Bienal com seis meses de atraso foi um esforço enorme para todos os artistas, mas é verdade que os processos ganharam uma nova determinação, uma energia inesperada: parece que cada um quis fazer melhor do que teria feito. A escolha de espalhar mais ainda a Bienal, fora do circuito dos museus, tem o seu foco em familiarizar públicos diferentes, incluindo quem não tem familiaridade qualquer com os conceitos de “Bienal” e “arte contemporânea”; inspirei-me muito nas experiências venezianas: acho que lá, há algum tempo, a audiência recebe uma grande atenção».
E assim vai-se para a Fundação Vera Chaves Barcellos, em Viamão, onde entre os outros artista se encontra Felipe Rezende, cujo trabalho pictórico se tornou, por essa ocasião, bem performático: inspirado pelo Dracula de Bram Stoker, o artista baiano que pinta sobre a lona de caminhão viajou da Bahia até Porto Alegre de caminhão para levar ao sul a terra da própria cidade, guardada em caixas cobertas precisamente por uma lona-pintura, refletindo sobre a nossa herança, identidade e origem.
Fora do centro também fica a Fundação Ecarta, cuja fachada tem sido completamente pintada com motivos pop-andinos pelo artista boliviano Freddy Mamami (1971), naquela que parece uma curiosa homenagem ao grupo Mahku e ao mural que cobriu a fachada do pavilhão central na Bienal de Veneza de 2024. Mais uma fachada utilizada em Estalo é aquela do Museu do Trabalho, onde a instalação Passatempo de Rochelle Costi (1961-2022), é tão simples quanto eficaz: dispondo as dez letras que compõem o título da obra como o mostrador de um relógio, inserindo no centro dele um ponteiro que não acaba de girar, a artista gaúcha coloca-nos diante do fluir implacável da matéria mais preciosa e misteriosa da vida. Uma intervenção que é também uma homenagem à própria Costi, uma das figuras mais queridas da arte brasileira contemporânea, cuja trágica partida foi uma das mais lamentadas no país, nos últimos anos.
Uma metáfora perfeita em volta de uma atitude que é preciso deixar estalar na nossa percepção: o tempo transitório que precisamos aproveitar e agarrar; o tempo que a Bienal do Mercosul conseguiu capturar para torná-lo favorável a si mesma, desafiando a conspiração daquele que alguém chamaria de destino, outros de mudanças climáticas e os restantes de descuido ambiental.