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Tabuinhas de Salvação em Conversation Pieces, de Ana Jotta e Jorge Nesbitt
DATA
23 Abr 2025
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AUTOR
João da Silva
À semelhança da pequena sala que dá lugar à exposição Conversation Pieces, de Ana Jotta e Jorge Nesbitt, na Brotéria em Lisboa, talvez as conversas signifiquem invariavelmente o estreitamento de um espaço, na exacta medida em que consistem na abertura de lugares, no atravessamento de…

À semelhança da pequena sala que dá lugar à exposição Conversation Pieces, de Ana Jotta e Jorge Nesbitt, na Brotéria em Lisboa, talvez as conversas signifiquem invariavelmente o estreitamento de um espaço, na exacta medida em que consistem na abertura de lugares, no atravessamento de portas, na perfuração de paredes e na reorganização e requalificação de territórios. O que parece ser um vocabulário quase administrativo, enxuto ou frio, de que aqui me sirvo propositadamente — propósito que, paradoxalmente, lamento e me compraz: considero que o crítico deve almejar as palavras mais justamente dispensáveis em face de uma obra de arte  —, este vocabulário, dizia, visa assinalar o intransponível em que a crítica sempre se debate. Intransponível que aponta essencialmente para a experiência individual da comoção estética. Debato-me, pois, com a dificuldade desejada, o esforço, tão agonístico quanto apaixonado, em que me vejo de procurar escrever sobre uma exposição em particular, esta, Conversation Pieces, exposição amorosa, se nos lembrarmos do que é para Emil Cioran o amor: “O amor é uma forma de comunhão e de intimidade: o que é que poderia exprimi-lo melhor do que o fenómeno subjetivo da dissolução, do colapso de todas as barreiras da individualização? O amor não é, todo ele, paradoxalmente, o universal e o singular por excelência?” Assim, entramos nesta exposição como quem se propõe participar de uma conversa há séculos inaugurada e a cada instante inaugural, em que um e outros objectos travam e, de um mesmo golpe, suspendem, a relação com o tempo. Conversa, som, palavra-elemento sempre-por-articular, que corta e sintetiza como um suspiro enfim escutado por força do muito ruído resumido no termo “quotidiano”: a vertigem preguiçosa de que certas palavras são o sinal do pensamento prescindido, acerca da linguagem como semântica relacional. Vários diálogos são encetados em Conversation Pieces: Ana Jotta conversa com Jorge Nesbitt, ambos com Giorgio Morandi e, à guisa de símbolo total a partir do particular — o amoroso Cioraniano — , desde uma tradição cristã, todos conversam, deslocando-o, com o valor da pobreza e a sua imensurável dignidade. Haverá, com efeito, um ímpeto, mais do que redentor, amplificador ou potencializador, na simplicidade das formas expostas, representativas essencialmente de objectos recipientes, mas também de um livro, um pedaço de pão, uma vela, em enquadramentos rectangulares e um circular, remetendo para uma auréola verticalizada, dando a ver um simples objecto, imprestável para qualquer virtualidade prática evidente e desprovido da aura a que tendencialmente esse halo de luz santa está associado.

Se a pintura de Giorgio Morandi concede a lisura do charme melancólico do quotidiano — este amorosamente subsumido a uma simplicidade que é, por vezes, o reduto visual e ético de mais difícil acesso —, as formas escultóricas aqui presentes adquirem a condição de abrigos a conquistar,  isto é, a fazer por merecer. A esculturização da forma pictórica por que estas peças aparentemente se constituem — muitas parecem quadros que lograram libertar-se da parede e formar um palco, uma casa, um resguardo de oração — despe-as de um valor primeiramente iconográfico, não exactamente para torná-las objectos a uso, com um fito prático, mas certamente dotadas de um calor e de uma palpabilidade humanas, mais próximas do corpo, seu canto e declínio, sua épica possível, sua elegia de fundo. Não se trata, portanto, de reproduzir formas constitutivas do mapa de todos-os-dias, mas de dar a conhecer uma representação, uma ideia de todos-os-dias, da pintura e da arte como passagem de uma perspectiva e de um meio para outro. O que é exemplarmente sublimado nesta exposição passa pela cedência ao espaço vazio por meio do qual um corpo, um volume recortado no tempo, se torna tocável e, antes e depois de tudo, visível: primeiro como miragem, letra a aprender, depois como corpo, templo, texto a habitar. Espaço vazio entre a parede e os objectos, entre os próprios objectos, entre nós e os objectos. Espaço vazio de investimento imaginativo: de amor e fé. A frugalidade, expressada pelo uso de cores ténues, arenosas, grudadas à terra que todos pisamos e de que todos nos esquecemos, não detém a austeridade de uma censura, nem comporta a assinatura de um mandato moral. A pobreza, em Conversation Pieces, é um modo de estar consonante com o que nos precede, seja na natureza, na argila batida e rebatida pelo vento e as águas do mar e da chuva, seja pelos artistas participantes de um elenco de figuras que compõem uma tradição artística privada. A conversa redunda — como uma coreografia que faz do corpo fantasia encarnada — no princípio singelo da imobilidade que se cumpre no tempo e o diz agente de mudança, esteira de vontade, sudário de mão em mão.

Trata-se, em todo o caso, de um regresso aos objectos como elementos representativos do nomeável, contrariamente às coisas (como não lembrar Georges Perec?), de que nada haveria a dizer, subsumidas que estão a um valor meramente comercial, de circulação. Ana Jotta e Jorge Nesbitt conversam da mesma antecâmara a partir da qual Morandi observava, para depois pintar, determinados objectos. Uma conversa entre tempos e a proposta do retorno a uma origem, considerada prisma comunitário, recreio dialogante, enfim, lugar de resistência.

Se o destinatário não é visível, isto é, pode estar em muitas partes, sendo de morada incerta, mas de presença pressentida, então o que é conversa torna-se oração. A oração endereçada a Deus é, com efeito, lençol verbal estendido por geografias incertas, de contagem e localização impossíveis, feita em pedaços energizados sob a crença de que resultem em expressão sentida. No fundo, a oração, uma conversa fragmentária, uma conversa-verso, um silêncio com-verso: com versos e de conversão. A oração, como a arte, como um conversar, essa tabuinha de salvação onde assentar os braços, esse amuleto no bolso trazido, que se carrega há não se sabe quanto tempo. As datas, o tempo e os lugares, afinal de contas, metáforas do que se dirá. Ou não.

 

Conversation Pieces, de Ana Jotta e Jorge Nesbitt, está patente na Brotéria até 7 de maio.

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