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Técnica mista sobre papel #4 – Almofadas? Sim, por favor.
DATA
22 Ago 2024
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AUTOR
Luísa Salvador
Há questões que se vão tornando prementes à medida que crescemos. Digo crescer, sim, porque se levarmos as coisas da maneira certa, não envelhecemos. Antes evoluímos, tornamo-nos melhores. Crescemos. Era bom, era! O corpo tem um progresso diferente.

Há questões que se vão tornando prementes à medida que crescemos. Digo crescer, sim, porque se levarmos as coisas da maneira certa, não envelhecemos. Antes evoluímos, tornamo-nos melhores. Crescemos. Era bom, era! O corpo tem um progresso diferente. E há matérias que se tornam indispensáveis para bem da nossa desenvoltura. A almofada é uma delas. E tal como outros bens essenciais, há mil maneiras de abordar a questão. A panóplia de almofadas na actualidade é um sem fim de possibilidades. Há almofadas de penas de ganso para uns, e de penas de pato para outros. Há também as de látex, com propriedades anti-alérgicas, mas com produção poluente. Existem as de viscoelástico, que têm “memória” e se lembram do contorno dos nossos rostos. Há almofadas quadradas, rectangulares, modelo 50 x 70 cm, modelo 60 x 60 cm, modelo portátil para meter na mochila, modelo escandinavo longilíneo. Existem depois, que o assunto é sério, as almofadas com características ortopédicas: para quem só dorme de barriga para cima, para quem só dorme para o lado esquerdo ou para o lado direito. Existem-nas mais altas ou mais baixas, mais duras e mais macias. O forro pode ser 100% percal de algodão, só algodão, ou uma mistura de polyester e algodão. Umas são tidas como mais frescas, outras ajudam-nos a respirar melhor.

Há também quem não passe uma noite sem mais do que uma almofada. O recorde de que soube recentemente, era uma pessoa que dormia com cinco almofadas. Uma para a cabeça, uma para cada lado, uma para os pés e uma ainda para abraçar. Escolher uma almofada é uma das epopeias da vida adulta de que ninguém fala. Uma almofada errada, e já fomos. São noites inteiras de desconforto.

E eis que surge ainda uma outra faceta das almofadas. As almofadas enquanto exercício pictórico. Esta apanhou-me desprevenida. E ainda por cima havia muito tempo para me preparar, uma vez que o exemplo mais extraordinário desta abordagem é de 1493, executado por Albrecht Dürer. Um desenho de seis almofadas, todas em posições diferentes. É uma lição brilhante de um olhar assertivo sobre um objecto que atinge proporções tão amorfas.

Depois de completar parte da sua formação pela Europa, um jovem Albrecht Dürer de vinte e dois anos retorna a casa, em Nuremberg. Este desenho das almofadas é um verso de um outro desenho — o auto-retrato do artista enquanto jovem, com uma mão empenhada e, curiosamente, uma almofada enrugada. A almofada, que se encontra a pairar no centro da composição, parece não pertencer ao todo. Não tem ligação com nenhum dos outros elementos, além de que é demasiado pequena para a escala do conjunto. Fica a dúvida, também, se a mão é parte da composição do auto-retrato, uma vez que aqui, ao contrário da almofada, a mão parece ser grande demais. Pelo menos toda a composição é atípica para a época. O que sabemos é que são três desenhos. Terão sido estudos preparatórios para um seu auto-retrato realizado do mesmo ano, que se encontra no Musée du Louvre, em Paris.

Mais interessante é a questão do reverso deste desenho. Dürer fez uma série de desenhos de almofadas onde são explorados efeitos de luz nas pregas do tecido. O que o levou a usar o verso do papel onde desenhou o seu auto-retrato? Na frente e verso, a técnica utilizada foi a mesma: tratam-se de desenhos executados com aparo e tinta castanha. Sabemos lá nós se o preço do papel à época não era tão ou mais proibitivo que agora. É uma possibilidade. Os meios de produção não eram tão disponíveis, certamente. O papel seria um bem precioso e usado na sua totalidade. Ficamos a saber também que já havia almofadas. Provavelmente seriam de penas, mas exactamente como as conhecemos hoje. Ou seja, há centenas de anos atrás, e mantendo a sua pertinência na actualidade, a abordagem à temática das almofadas pode ser considerada um autêntico tema clássico. A ele retornamos, num vaivém temporal que mostra a sua constante reactualização.

Há estranheza do tipo de estudo para a época em que é executada. Debruça-se sobre um artefacto mundano que não teria total importância de ser eternizado no papel. A composição é metódica e procura alguma questão formal. Poderá ter sido um desenho para exercitar, como se faz ainda hoje com a tradição dos panejamentos nas aulas de desenho.

Na composição, as primeiras duas almofadas funcionam como conjunto, uma vez que partilham um jogo de sombras entre os seus limites. As outras são estudos autónomos. As sombras são riscadas, como se na trama das linhas se erguesse uma dimensão tridimensional, elevando o tecido fino a uma forma presente. Mas também podemos pensar que este trabalho capta a oscilação entre o mundo acordado e a matéria dos sonhos. É nas almofadas que pousamos o nosso rosto todas as noites, onde nos viramos e reviramos nas várias fases do sono. As almofadas são um artefacto mnemónico: não só estão lá os vestígios das impressões de quem ali dormiu, mas encapsulam também as figuras híbridas e fascinantes que povoam os nossos sonhos. Então, num olhar mais detalhista, nas pregas destas almofadas amorfas podemos entrever contornos de outras figuras distorcidas, que vêm dos nossos sonhos directamente para aquela nossa almofada matinal. Mais onírico ou menos, as almofadas são o vestígio da noite que passou. Dürer torna visíveis as almofadas. Obriga-nos a pensar sobre elas, a relê-las todas as manhãs. Ali deixamos o mundo turvo da noite, para dar início a mais uma manhã luminosa.

 

Nota: a autora não escreve sob o abrigo do AO90.

BIOGRAFIA
Luísa Salvador (Lisboa, PT) é artista visual e investigadora. É doutorada em História da Arte Contemporânea pela NOVA FCSH. Tem Mestrado em História da Arte Contemporânea da NOVA FCSH e Licenciatura em Escultura da FBAUL. Expõe regularmente desde 2012. Participou no programa de residências artísticas do Festival Walk&Talk, São Miguel, Açores (2018-2021) e da Fundação Cecília Zino, Funchal, Madeira (2021). Foi vencedora do Prémio Jovens Criadores 2018 na categoria de Artes Plásticas e 2º Classificada do Prémio de Arte Edifício dos Leões 2023 / Banco Santander. A par da sua prática artística, desenvolve também actividade escrita, em textos teóricos e crónicas. Sob o pseudónimo Luísa Montanha e Vale, fundou em 2018 a publicação trimestral Almanaque — Reportório de Arte e Esoterismo da qual é editora. É co-fundadora do podcast Debaixo das Estrelas. Recentemente, começou a colaborar como cronista na revista Umbigo. Vive e trabalha em Lisboa.
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