No Verão de 2025, Jonathan Anderson (1984 -) apresentava a sua colecção para a Dior Homme, no Hôtel des Invalides, também em Paris. Era a sua primeira colecção como director criativo da Christian Dior, no auge de uma carreira enquanto criativo de outras marcas de moda, nomeadamente a sua pessoal, JW Anderson, e mais recentemente, a Loewe.
Estes dois momentos aparentemente distantes, temporal e conceptualmente, têm algo em comum. É que estranhamente, ou talvez nem tanto, alguns dos espectadores do desfile da Dior Homme, a 27 de Junho de 2025, repararam que na sala estava presente uma pintura, muito particular, vívida e destoante, anacrónica ao momento que se desenrolava. Era a pintura de Chardin, Le Panier de fraises. Porquê, lá voltaremos. Primeiro, deixemo-nos levar por alguma informação sobre esta curiosa pintura.
De composição pictórica relativamente despojada e simples, Le Panier de fraises (1761) é um belíssimo exemplar do que pode ser uma natureza-morta. Com apenas alguns elementos representados, esta pintura captura as vibrantes características de uma estação — o Verão. Tons fortes e saturados, uma procura por uma luz da alvorada ou crepúsculo para não nos confrontarmos com as altas temperaturas do resto do dia. A aparente simplicidade de coisas que têm fortes atributos: muita cor, muito sabor. Porque o Sol e as temperaturas quentes da época lhes promovem essas características. Panier de fraises celebra toda essa estivalidade.
O elemento central é uma cesta de verga encimada por uma pilha bem equilibrada de morangos pequenos, mas pujantes de cor e, imaginamos, no sabor. É quase um monumento faraónico que ali se entrevê: uma pirâmide de vermelho intenso, uma construção elaborada, constituída por uma multitude de pequenos elementos. Cada morango, um pequeno cone, uma pequena irregularidade que pode derrubar, a qualquer momento, toda a elaboração da composição. Que frutos tão instáveis e tão reluzentes, estes! Ao seu lado, também pousado sobre a mesma mesa de madeira, um copo de água, de aparência básica, pertencente aos quotidianos banais. Vidro e líquido transparente, mas o apontamento do refresco do líquido a dar uma névoa de opacidade ao vidro. Estamos perante um copo de água fresca. Gelada, até. A cruzar estes dois elementos, colocados na superfície, dois cravos brancos. Flores frescas, que à época eram uma espécie de princesas das flores, apenas destronadas pelas rosas, as rainhas do mundo floral. Mas há na pintura de Chardin uma constatação retumbante de que a estação representada é mesmo o Verão: do lado oposto ao copo de água, estão também representados um pêssego e um par de cerejas. Ambos frutos do calor. Não pude deixar de ficar intrigada — não é assim que reconheço o Verão e a sua fruta.
Das coisas que mais gosto de averiguar quando estou perante uma natureza-morta é a sua sazonalidade. As naturezas-mortas muito nos informam sobre hábitos, paisagens e princípios. Há um exemplo de uma pintura, de meados do século XVII nos Países Baixos, em que uma laranja surge no meio de uns quantos objectos. A laranja não era um apontamento corriqueiro. Revelava as tendências patrióticas do pintor que a concebeu. A laranja era um símbolo da autonomia, a metáfora da força de uma casa real num país dividido. Com a cesta de morangos de Chardin, nunca saberemos se haverá algum significado político semelhante com a escolha desta fruta. Mas informa-nos que nos Verões do século XVIII, o morango era uma fruta da estação. Sou sensível à causa dos morangos, pois nascida que sou em Maio, sempre tive morangos nas celebrações. Recentemente tenho observado o fenómeno de antecipação dos morangos, a chegarem por vezes tão cedo quanto Março. De repente, Maio é época de cerejas, algo que durante toda a minha infância, adolescência e uma certa idade adulta, era fruta de Verão. Era o prenúncio da chegada dessa estação, juntamente com alperces, nectarinas, pêssegos, ameixas, e tanto outros frutos fortes, vibrantes e doces. E, portanto, o fenómeno tem vindo a antecipar-se. Chardin com esta pintura informou um espectador do século XXI, neste caso eu, de que morangos eram sinónimo de Verão. Chegavam algures entre os meses Junho e Julho. Isto, tenho de constatar, será consoante as geografias. Por exemplo, num artigo de Maio deste ano, da BBC, em Inglaterra prevê-se que 2025 será um excelente ano para morangos. A combinação dos dias quentes e as noites frescas são factores reconhecidos que tornam os morangos mais doces. Com as temperaturas frias da noite, os morangos descansam, pondo toda a energia que têm para durante o dia, produzirem mais açúcares naturais. Parece ser uma explicação. Faz sentido que em Portugal se antecipem na chegada, com as recentes temperaturas que se observam por cá quando o Verão finalmente chega. A nossa Primavera terá características mais simpáticas ao desenvolvimento dos morangos. E assim, sem intenção, Jean Siméon Chardin revela-nos as alterações do clima num pequeno intervalo de séculos.
Chardin pintou e apresentou Le Panier de fraises no Palais du Louvre, que no século XVIII ainda não era o museu como o conhecemos actualmente, mas era já um lugar onde se organizaram vários Salons de pintura e escultura. Le Panier de fraises, quando apresentada no Salon Carré em 1761, foi altamente elogiada e admirada pela franja artística da sociedade da época. Denis Diderot escreveu sobre esta pintura, que foi igualmente apreciada pelos irmãos Goncourt. Descrevem uma natureza-morta que revelava a própria substância dos objectos, o ar e a luz, organizada e arrumada, por contraste com a “bela desordem” de outras pinturas anteriores do pintor. Efectivamente, esta natureza-morta tem algo de contraditório. Por um lado, admira-se o rigor da composição, a clareza e extremo cuidado na representação dos elementos, a suavidade dos pormenores realistas. Mas não deixa de ser uma pintura de extrema sensualidade, na medida em que nos cativa os sentidos, entre as cores pujantes e a sugestão do sabor doce dos frutos. É audaciosa na sua dualidade.
Neste último ano, Chardin voltou a estar em destaque. A pintura Le Panier de fraises, depois de muitos anos na posse da mesma família, foi posta à venda. Corria o risco de sair de França. Numa acção de marketing e mecenato, o Musée du Louvre decidiu lançar uma campanha para a aquisição da pintura. Dois terços do preço de aquisição foram assegurados pelo grupo LVMH, outro terço pelo Louvre, e surpreendentemente, dez mil pessoas, a título pessoal, contribuíram com o restante terço que faltava. Cerca de 1 milhão e trezentos mil euros, com uma média de cem euros de donativo por pessoa. O Musée du Louvre é actualmente o proprietário da pintura, que é como quem diz, o Estado Francês. Le Panier de fraises, chamada de “Tesouro Nacional”, não saiu de França. No dia em que Jonathan Anderson se apresentava como director criativo da casa Dior, marca detida pelo grupo LVMH, Panier de Fraises estava na sala. Emprestada ao grupo patrono que foi responsável por uma boa parte da sua aquisição, a presença da pintura foi uma demonstração de poder. Quem sabe agora os morangos passem a ser também metáfora para outros assuntos fora do espectro artístico. Mas para já, dúvidas existissem, Le Panier de fraises é uma pintura que celebra a formosura do Verão. E que rico tesouro que é. Esta saison parece ser, afinal, sobre o que podem os morangos.