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Um Silabário por Reconstruir, no CACC e Sala da Cidade
DATA
09 Mai 2025
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AUTOR
Manuel Costa Cabral
No âmbito de uma candidatura à Rede Portuguesa de Arte Contemporânea e integrado numa política de descentralização nacional para a arte, o Município de Coimbra dá a conhecer, no CACC e Sala da Cidade, o primeiro momento do projeto curatorial e expositivo Um Silabário por Reconstruir, da autoria de José Maçãs de Carvalho.

No âmbito de uma candidatura à Rede Portuguesa de Arte Contemporânea e integrado numa política de descentralização nacional para a arte, o Município de Coimbra dá a conhecer, no Centro de Arte Contemporânea de Coimbra e Sala da Cidade, o primeiro momento do projeto curatorial e expositivo Um Silabário por Reconstruir, da autoria de José Maçãs de Carvalho.

Em parceria com os Municípios de Óbidos, Elvas e a Culturgest, viabilizando a circulação de um conjunto de 120 obras de 80 artistas nacionais e estrangeiros pertencentes à Coleção de Arte Contemporânea do Estado, Coleção Caixa Geral de Depósitos e Coleção António Cachola, o projeto expositivo de circulação promove um processo de pesquisa e investigação das três coleções e a possibilidade de um trabalho em rede de forma sustentada.

Colocando em relação uma série de obras que convocam uma ideia narrativa, Um Silabário por Reconstruir projeta-se em quatro lugares e momentos distintos: em Coimbra, no CACC e Sala da Cidade (de fevereiro a maio de 2025); no Museu de Arte Contemporânea de Elvas (de julho a outubro de 2025); na Galeria NovaOgiva, em Óbidos (de dezembro de 2025 a fevereiro de 2026) e na Culturgest, no Porto (de março a maio de 2026). À diversidade arquitetónica de cada um dos espaços que acolhe o projeto, influenciando o próprio desenho expositivo, acresce-se o convite a jovens curadores na investigação e seleção das obras que compõem cada polo: Joana Oliveira Borges em Coimbra; Tiago Candeias em Elvas; Inês Faria em Óbidos e Filipa Valente na Culturgest Porto.

Submetida a uma temática especifica, José Maçãs de Carvalho elegeu como mote da exposição a ideia de considerar a obra de arte visual por analogia com a orgânica e a arquitetura do texto, essencialmente literário, apresentando como leitmotiv da mostra a existência de um potencial narrativo em todas as obras. A partir do universo literário, observamos a diversidade de peças que compõem a exposição no CACC, que entre pintura, desenho, escultura, fotografia, vídeo e instalação, sugerem uma leitura narrativa. Num primeiro momento, sombrio e cenográfico, a presença da escrita não se encerra no suporte, antes expande-se para o espaço expositivo em obras cuja narratividade é-nos revelada nos aspetos formais. Observamo-lo na fotografia de Jorge Molder pertencente à serie Inox (1995), onde a presença física do artista, o seu rosto, gestos e linguagem corporal assumem o papel principal, sublinhado pelo uso do preto e branco. De pendor nostálgico e místico, a obra remete-nos mais para uma ideia de presença do que de representação, criando um diálogo de tensões interessante com a obra videográfica de Ana Rito, Le Mot et le Fantôme (2015). Como um fantasma que assombra o mundo das imagens, a personagem de Molder, sentada de rosto sério e de cigarro na mão, parece observar qual voyeur as figuras que habitam o filme, cuja escala e intensidade despertam a atenção. Num espaço dominado pelo negro, o mesmo que encontramos na fotografia, o foco do espectador é conduzido pelo rosto da atriz que sussurra ao ouvido de um busto petrificado. Ao longo de uma narrativa secreta, é no silêncio que se adivinham as palavras que ecoam na escuridão, numa obra que explora a possibilidade escultórica de ações silenciosas através do corpo e de um vocabulário gestual-visual. Este fio narrativo estende-se à pintura de Álvaro Lapa, onde duas figuras, como sombras, perfiladas a negro parecem encetar um diálogo, em que uma fala e a outra escuta. No mesmo espaço, destaque para a delicadeza do gesto da figura feminina que, entre imagem religiosa, mitológica e onírica, segura uma seta por entre a neblina na pintura de pendor nostálgico de Rosa Carvalho, melancolia que reencontramos nas obras de Miguel Branco cujas caveiras convocam a ideia de morte e silêncio.

No segundo piso dedicado à exposição, a evidência da palavra na ausência da escrita encontra-se presente na instalação de Dalila Gonçalves, Amontoar em Carga e Descarga (2015), na qual mediante um processo de trabalho de dissecação e (re)descoberta de materiais quotidianos, a artista revela o que os torna únicos pelas histórias que encerram e funções primordiais. Refletindo a importância da memória, da ideia de tempo e da sua passagem, observamos uma série de canetas Bic usadas que, fixas na parede, se arqueiam conforme a quantidade de tinta que encerram, no que se assemelha ao desenho de uma paisagem. Numa outra obra da artista, O tempo dos outros às vezes é o meu (2019) deixamo-nos atrair pela forma cilíndrica e serpenteante que se estende pelo piso da galeria, para nos surpreendermos com uma extensa coleção de senhas de loja que, agrupadas num novo suporte, adquirem uma morfologia que as distancia da sua função original. Na mesma sala, destaque para a presença de obras cuja narratividade surge de elementos paratextuais que no campo pictórico apelam a novas leituras: Um bilhete p/ubiquidade (2003) de Jorge Martins, onde a expressão do tempo volta a ser explorada; Dois amigos (1982) de Julião Sarmento e Blind Image #177 (2010) de João Louro, cuja legenda – proveniente de um filme – incita à imaginação do espectador, enquanto a camada acrílica e reflexiva da tela o espelha, integrando-o no trabalho.

O convite ao universo imagético do observador prossegue no terceiro piso da mostra em obras como Untitled 2016, de Gonçalo Barreiros: setes linhas de dimensões variáveis em ferro pintado que, inscritas na parede, exploram capacidades transfiguravas e evocam o universo literário e linguístico ao representarem o que se assemelha a um texto rasurado a spray, numa espécie de trompe l’oeil pictórico realizado em escultura. A questão do texto e da sua essência visual é-nos oferecida no poema visual de Catarina Dias que explora a reafirmação da palavra como forma e linguagem. Convidando o espectador a ocupar o espaço vazio das letras recortadas, a obra impõe-se como projeção que se estende à parede apresentando-nos um duplo, um desenho que se encontra num outro lugar físico. Destaque para a relação curiosa entre a expressão verbal e gestual da escultura Study for Paranomia (2018) de Andreia Santana, um desenho espacial que se parece materializar enquanto eco visual na série de desenhos de Rui Sanches, nos quais reconhecemos a presença da letra enquanto signo. A encerrar a exposição no CACC, somos confrontados com o humor e a ironia da peça de inspiração readymade de Ana Jotta e Pedro Casqueiro, Solitaire Universel (1994) que, composta por caixas de cassetes manipuladas, apresenta-nos a palavra enquanto campo fértil capaz de criar uma série de narrativas e possibilidades através da sequência de palavras que compõem a obra.

Convidando a uma leitura narrativa e expandida da linguagem e do corpo, Um Silabário por Reconstruir estende-se à Sala da Cidade com duas obras de Rui Chafes – Debaixo da pele XIV (1992) e Estrada do sonho (1997) – e o resultado da performance Queda, Evento, Composição, Figura II de Vera Mota, que aconteceu no dia da inauguração, cujo vestígio e registo de materiais se assume enquanto partitura/composição, evocando a ideia de linguagem enquanto lugar de resistência.

A exposição pode ser visitada até dia 18 de maio.

 

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