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Uma Ontologia das Possibilidades Amigas — and, and, and and.
DATA
04 Out 2024
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AUTOR
Benedita Salema Roby
Em Friend and Foe, de Bartolomeu Santos, a tônica aparenta estar na conjunção copulativa “e” (and), ao estabelecer uma relação de afinidade e cumplicidade entre os conceitos antagónicos “amigo” e “inimigo”.

Em Friend and Foe, de Bartolomeu Santos, a tônica aparenta estar na conjunção copulativa “e” (and), ao estabelecer uma relação de afinidade e cumplicidade entre os conceitos antagónicos “amigo” e “inimigo”. Esta proposta resulta numa série de possibilidades rejeitadas pelos dualismos que o modernismo alimentou, tal como pela compartimentação dos saberes e das práticas, naquilo a que se chamou disciplinas. A questão da fragmentação – conceptual, material, espacial, temporal, etc. – resultante dessa dualidade moderna que define a realidade já não é uma novidade no plano conceptual e criativo de Bartolomeu Santos. Em Emotional Derbies (Duelos Emocionais) — patente entre Dezembro do ano passado e Janeiro de 2024 na Galeria Plato, em Évora —, o peso das escolhas; a tensão entre os binómios que extremam essas escolhas; e a cumplicidade da disparidade constituem um duelo (material, marginal, transversal) que parece encontrar o empate nesta exposição. O empate não é a medialidade, nem muito menos a conformidade, mas a liminaridade, a ambiguidade, ou a possibilidade da amizade, pela conversa, ao invés da anulação da oposição, pela disputa.

No seguimento deste discurso, das possibilidades ambíguas ou amigas, proposto por Bartolomeu para o espaço da Galeria Foco – ou para as obras que ele para lá transporta –, importa esclarecer de que forma é que o artista concebe esse enunciado no âmbito da sua produção material. São esponjas. São esponjas, que também já não são novidade na materialidade da conceptualidade avançada por Bartolomeu, tanto em The Colors Remain the Same after the Sequence (2021), como em Emotional Derbies (2023). Enquanto nestas séries anteriores as esponjas tomam a forma das materialidades exteriores que as domavam e dominavam – embora menos nos sacos de vácuo em Emotional Derbies do que nas caixas de vidro em The Colors Remain the Same after the Sequence –, na Galeria Foco elas afiguram-se através de outras amizades que não encerram a sua “agência”, mas transformam-na ao reivindicar reciprocidade material. O diálogo entre a esponja, o epóxi e a vontade plástica do artista concebe obras que se formulam dessas e nessas conversas cúmplices – de forma que nenhum dos elementos transparece por si só, mas por meio do “todo” que agora o é. Apesar de Bartolomeu nos mostrar os agrafos e o contraplacado, e de reconhecermos o epóxi e a tinta acrílica – a esponja deixa de se distinguir e identificamos, ao invés, o encontro e não o confronto dos constituintes. É nesse encontro que surge a amizade, que por sua vez abre caminho à possibilidade do novo. De tal forma que as esponjas expostas parecem conceber um mostruário de cristais de Murano. A questão não é a glamorização do banal, mas a possibilidade da ambiguidade, a mutabilidade, e a potencialidade do diálogo, do encontro, da amizade e da reciprocidade – no banal.

No principio deste ano, já o artista nos dizia: “esta semana estava no atelier e (lembrei-me) pensei como é importante existirem várias espécies a coabitar na floresta. Transpondo isso para a minha prática, consigo dizer que as obras ou as ideias de obras nascem umas das outras. Mesmo quando acho que vou fazer um trabalho ‘novo’, vejo que está intrinsecamente ligado a outros… como nas florestas.” O que Bartolomeu considera é a concepção de uma zona de contacto – onde ocorre o efeito marginal – dentro do seu espaço criativo, o atelier. Na ecologia[1] (a ciência que estuda a relação dos seres vivos com o seu meio envolvente), o efeito marginal apresenta uma oportunidade de grande criatividade. Este efeito ocorre num ecotone, que consiste num espaço de transição entre duas ou mais comunidades distintas de seres vivos. É neste espaço que se verificam os contactos entre as múltiplas espécies vizinhas. A sua grande riqueza reside no facto de conter, geralmente, tanto organismos das comunidades adjacentes como, para além desses, organismos característicos do próprio ecotone, que nascem da confluência dessas comunidades vizinhas. Tome-se como exemplo as orlas e as margens. Ou seja, no ecotone, o número de espécies é sempre maior do que nas comunidades envolventes, tornando-se, efetivamente, mais rico e complexo do que as comunidades que lhe deram origem. Os ecotones existem porque a comunidade é heterogénea, fragmentada e descontínua. A fragmentação, então – composta também pela dualidade característica da modernidade –, deixa, assim, de constituir uma característica negativa para promover um conjunto de oportunidades de continua (re)criação. Não serão estes os espaços onde ainda será possível o encontro com o com o outro?

Pois bem, foram muitos outros que encontrámos na Galeria Foco, concebidos no seio das possibilidades do espaço do atelier como zona de contacto. E o que é o contacto se não a aproximação ou interiorização da exterioridade? E o que é o contacto se não o “e”? Bartolomeu Santos, amigo e inimigo, aguarda pelo contacto para a decisão, que sugere ser sempre motivo de conciliação. Deixa-nos, assim, com a possibilidade da amizade, que parte sempre da exterioridade do eu. Em termos ontológicos, “o amigo seria aquele que, sendo um outro de si mesmo (um heteros autos), completaria a unidade fora de si”[2].

Com amigos assim, quem precisa de inimigos? Friend and Foe, de Bartolomeu Santos, com curadoria de Julia Flamingo, está patente na Galeria Foco até 19 de Outubro de 2024.

 

Nota: A autora não escreve ao abrigo do AO90.

[1] Odum, E. (1997). Fundamentals of Ecology. Fundação Calouste Gulbenkian.
[2] Chiara, J. (2020). “ENSAIO, um outro Modo de Dizer Amigo: Escrita e amizade na filosofia.” Rede Brasileira de Mulheres Filósofas. Disponível em .

BIOGRAFIA
Benedita Salema Roby (n. Lisboa) é licenciada em História da Arte (2019) e mestre em Estética e Estudos Artísticos (2022) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa com a dissertação "Graffiti: Considerações Acerca da Estética da Transgressão no Espaço Público da Cidade". Actualmente, encontra-se a realizar o doutoramento em Estudos Artísticos — Arte e Mediações na mesma instituição, onde desenvolve, com financiamento da FCT, uma investigação centrada no potencial de libertação societal e coletiva em torno de práticas (artísticas) transgressoras, como o graffiti e a pichagem política. Sobre este tema, também participa na realização de documentários e organiza oficinas de prática e pensamento orientadas para jovens. O seu projeto de tese, intitulado "A Desconstrução da (experiência da) Cidade e a Construção da Esfera Contra-Pública: Escrita Criativa Transgressiva, Estética e Política", é orientado por Cristina Pratas Cruzeiro e Joana Cunha Leal. Para além de publicações académicas, escreve sobre artistas emergentes e exposições de artes plásticas e performativas para revistas independentes, como a Umbigo e a Sem Título.
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