Casa-museu-escola do/no Subúrbio Ferroviário de Salvador, Bahia, Brasil, subverte noções e práticas brancas, ocidentais e burguesas da Arte
Agnaldo Novaes, Alàgbà do Ilé Axé Asìpá (terreiro de candomblé localizado em Piatã, Salvador – Bahia, fundado pelo artista e pensador Mestre Didi) afirma na reportagem “Axé: Nós Fazemos”, que “o lugar da arte é o lugar da preservação”. Portanto, preservar obras é também preservar memórias, narrativas e tudo o mais que simbolizem formas de vida. Também nesse sentido, Achille Mbembe define as esculturas que representam figuras escravocratas ou símbolos coloniais como “necromancia”. Ou seja, são um feitiço da branquitude para permanecer fabricando no imaginário coletivo a ideia de que os usos e frutos daquelas sociedades só são possíveis graças à cultura ocidental, branca, colonial, capitalista e escravocrata. Se atentando ao peso simbólico e histórico da Arte sob essas perspectivas, podemos compreender e destacar o valor de instituições como o Acervo da Laje.
Fundado por Vilma Santos e José Eduardo Ferreira Santos há 14 anos, o Acervo da Laje é uma das iniciativas mais pungentes da arte contemporânea no Brasil. Montado a partir de obras de artistas do Subúrbio Ferroviário de Salvador, o Acervo se constitui enquanto museu-casa-escola que acolhe e reflete as tensões, soluções, afetos, expressões e anseios do seu território e a partir do seu território. Ninguém fala por ninguém. O Acervo da Laje também elabora soluções para questões como representatividades, territórios, corporeidades, pertencimento e tradições no Mundo. Como força motriz da sua fundação, há a necessidade de reafirmar e valorizar os ciclos da beleza, da arte, da mansidão (não mais da dor e exaspero), do Subúrbio Ferroviário da cidade de Salvador, primeira capital do Brasil e atual capital do estado da Bahia. No bairro Plataforma, onde está baseado o Acervo, é nítido o enraizamento dessa iniciativa revolucionária que aposta e investe em diversas frentes para garantir a promoção e respeito à saúde, bem-estar, educação, enfim, humanização, de quem reside na região e de quem quer que se sinta representado por ela. O Acervo da Laje é um exemplo de instituição de arte periférica e negra que, mesmo dialogando com demais instituições externas ao território de sua origem, se mantém verdadeiramente próxima das filosofias, estéticas, poéticas e cosmogonias do seu território que, de algumas formas, também representa a realidade vivida pela maioria da população brasileira, negra e/ou pobre.
O Acervo da Laje foi o único museu do Brasil e nas Américas a ser contemplando pela edição de 2023 do projeto MuseusFuture, do Instituto Goethe da África do Sul, tem como objetivo “reelaborar as abordagens tradicionais da museologia, propondo novas formas, linguagens perspectivas com a finalidade de promover novos horizontes culturais”. Entre os dias 7 a 12 de dezembro de 2023, Vilma Santos e José Eduardo Ferreira Santos, fundadores do Acervo da Laje, estiveram em Maputo, capital de Moçambique, para conhecer o Museu da Mafalala. Segundo José Eduardo, o intercâmbio “foi muito especial, pois nos ajudou a pensar o futuro do Acervo da Laje com mais esperança e proatividade e diálogos e se constituiu como espaço de diálogo e orientação para o futuro a ainda a possibilidade de conhecer o Museu da Mafalala em Maputo, Moçambique e estreitar os laços com esse museu tão importante para o mundo, através de um intercâmbio que foi muito significativo para ambos os museus e que abre portas para novas parcerias e colaborações. Lá pude conhecer expressões musicais como a Marrabenta, assim como artistas locais que precisam ser conhecidos aqui no Brasil”.
Pouco antes de participar do intercâmbio presencial, no dia 25 de novembro de 2023, o Acervo da Laje inaugurou a exposição Memórias para Dona Antônia, uma homenagem à matriarca do Acervo e mãe de Vilma Santos – Dona Antônia Dias Soares. Segundo o Acervo, essa é uma exposição afetiva, ancestral e contemporânea que trata de uma mulher negra, da periferia de Salvador, que foi de grande importância para a existência do Acervo da Laje. “Com a partida dela em fevereiro deste ano (2023), pedimos a vários artistas que a retratassem em diversas obras de arte, o que gerou essa exposição”, afirma a instituição. A exposição reúne obras de 25 artistas que, através de diferentes suportes e técnicas, contribuíram para a exposição tendo como fontes dois únicos registros fotográficos de Dona Antônia: o primeiro feito por Elzinha Abreu em 2015 e o segundo por Ana Devora em 2020. Além de também contar com curadoria coletiva, há na mostra textos críticos que foram lidos durante as três pré-aberturas da exposição. Disponíveis através de QR Code no espaço expositivo e também neste e-book disponível no Instagram do Acervo da Laje, os textos foram escritos por “críticos, curadoras, curadores e professoras que têm uma relação com as experiências do Acervo da Laje para proporcionar, ao longo da exposição, debates e diálogos cobre as questões da representação do povo negro nas artes visuais, a importância das mulheres negras nos espaços de arte e na criação de novas possibilidades de educação para as novas gerações”, afirma José Eduardo Santos. Entre os/as autoras estão Gabriela Leandro Pereira Gaia, Izabela Pucu, Paola Barreto, Keyna Eleison, Marcelo Campos e Lilia Schwarcz que, no seu texto, afirma: “ Era também dela a casa que serviu de sede ao Acervo da Laje, esse projeto de arte coletivo em seu DNA, e que vem revolucionando as estruturas canônicas presentes no universo das artes, ainda muito marcadas por modelos bastante elitistas que têm na figura do curador seu símbolo maior e mais centralizador. ‘Memórias de dona Antônia’, por seu turno, é múltipla e aberta. Nas obras e na curadoria”. A exposição permanecerá na sede do Acervo da Laje por tempo indeterminado.
Visitando a exposição algumas vezes ao longo desses dez meses, percebo que há uma subversão intensa que não se faz a partir de um processo racionalista, mas sim afetivo. Nesse sentido, Memórias para Dona Antônia nos leva a crer que é possível a existência de portais. Essa coisa que faz desvelar a alma do tempo, desnudar o lugar do espaço na gente. Aos olhos racionalistas, seria exagero ou hipérbole desmedida afirmar que um portal existe em no Subúrbio Ferroviário de Salvador, cidade no Nordeste do Brasil. O que dirá a razão quando vislumbrar que o tal portal tem seu valor sustentado pelo fato de não nos transportar a nenhum outro lugar? O contrário: seu ouro é fazer-nos fincar raízes infinitas e almejar outros tipos de topo. A razão desse portal existir consiste em fortalecer o sentido da vida onde ela se encontra: aqui, do jeito que a fazemos, com a beleza que temos e a sabedoria que imaginamos. No caso, o portal tem nome e sobrenome: Acervo da Laje, chamamo-lo. E ele atende. Graciosamente, ele se expande.
Memórias Para Dona Antônia é uma emoção. Temos visto homenagens a gênios, artistas, escritoras, insetos, palavras, sensações, mas nunca a um pilar da vida como ela. Pilar como merendeira, marisqueira, parteira, mãe, avó, amor, amor, amor. Trabalho, partilha, inteligência, sabedoria e amor. Dona Antônia. Não figura abstrata, nome comum, mulher como milhares ou milhões de brasileiras outras. Não. Ela. Dona Antônia, no e para o Subúrbio Ferroviário, mais especificamente no bairro Plataforma, na sua rua Sá de Oliveira, com vida, rosto, amor, nome, filhas, raízes e memórias que devemos lembrar e reconhecer como dignas de ocupar essa instância elitista que é a Arte como costumamos (ou costumávamos) reconhecer. Digna do tempo de toda a equipe que realizou a exposição, de todos/as artistas, com suor, talento, lágrimas e risos, resquícios de suas vidas. Digna da coragem da notável artista Ludmila Lima que há tempos não pintava e chegou ao Acervo com uma obra em sua homenagem. Digna do despertar motriz da autoestima e brilho que levou uma ex-aluna de Vilma Santos a ir até lá e assumir que pinta, entregar uma obra. Temos ao redor dessa mulher soberana várias manifestações da sua soberania. Tudo parece, e é, como deve ser: uma ode a Dona Antônia. Isso já é muito. Isso já é tudo. Ou quase.
O fato de dedicar obras, tempos, espaços, vozes, palavras, luzes, olhares, energias, corpos e discussões (como essa) a Dona Antônia já realiza uma grande mudança no que se pode pensar como função das Artes no Brasil e no mundo. Ela não é apenas semente do que hoje é o Acervo da Laje, célula original e fundamental. Mas é também pilar, repito, de uma comunidade, de uma família, com filosofias e sabedorias inteiras que seguem absolutas porque coletivamente rememoradas. Não há o que dizer sobre o impacto disso na vida de quem conviveu com ela. Apenas eles e elas dirão. Nos cabe aqui um esforço: imagine visitar uma exposição como essa dedicada a quem te alimentou com as palavras, coração e mãos. Alguém que quiçá te conheça antes de você conhecê-la (o tempo tem maestrias como essa). Repito: Memórias para Dona Antônia é uma emoção. Abdico do meu ofício de crítico para ressaltar o que não se pode pôr em palavras meramente lógicas. Abdico da crítica nesse trecho anticrítico do texto porque Suely Santos, sua filha e mediadora da exposição, me disse que Dona Antônia via com o coração. O artista Bruno Costa com sua obra compreendeu isso.
Aqui não cabem os conceitos brancos e elitistas ligados à Arte. Essas premissas são absolutamente tensionadas pela exposição e pelo Acervo da Laje ao longo da sua trajetória. Há um convite à evolução, há o território como absoluto e as suas memórias como magistrais. Há o Acervo da Laje, portal dos portais. Dona Antônia certamente alcançou na vida muitas glórias. Após sua passagem, tem sua memória celebrada e preservada por esta que é a mais importante instituição artística, educacional e familiar do mundo: o seu lar. Portal para sempre, Dona Antônia. A eternidade te celebra.