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Uma casa no CAM, de Carlos Bunga
DATA
05 Dez 2025
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AUTOR
Joana Duarte
A exposição Habitar a Contradição integra uma das maiores e mais impactantes instalações de Carlos Bunga. Bosque materializa-se numa profusão de colunas de cartão ou antes, árvores, que invadem a grande nave do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. O seu espaço e condição de museu são desafiados, tornando-o jardim, uma casa para todos.
“Para mim é muito importante chamar a este espaço casa e não museu. Uma casa que é para todos”, refere o artista no início da nossa visita. Explica-nos, em conjunto com o curador Rui Mateus Amaral, que as peças onde reconhecemos objectos do quotidiano - cadeiras, tapetes, mesas - foram colocadas no átrio de entrada com o intuito de humanizar a instituição e anunciar este espaço doméstico.
Xavier Monteys e Pere Fuertes, no livro Casa Collage, descrevem a casa como “uma habitação, acrescida das pessoas que nela vivem e dos objetos que contém”; utilizamos a palavra “casa” em vez de “habitação” devido à “identificação que o termo estabelece com os seus ocupantes.”[1] Estas afirmações dão sentido ao trabalho de Carlos Bunga, sendo óbvia a sua relação com o público, elemento essencial na activação e completude das suas instalações. A performance é fundamental na sua prática, estando associada a uma ideia de permanente transformação e actuando nos campos do espaço e do tempo. Exercícios que entram nos domínios da Arquitectura, e que perseguem os seus arquétipos. Não é por acaso que nos deparamos com dois vídeos à entrada da exposição, um acerca do ballet Gulbenkian, extinto em 2005, e uma performance do próprio artista From Space of Circulation to One of Freedom I. Aqui, Carlos Bunga afirma, “esta é uma peça que só faz sentido quando todos estamos aqui, é uma obra para ser tocada, contornada, para que nos envolva.” O artista conclui dizendo que os bailarinos com que mais se identifica são as pessoas.
As pessoas são assim convidadas a entrar. Cadeiras, semelhantes às já existentes no jardim, colocadas ao longo do espaço do museu, incitam à permanência, a um desfrutar do espaço e da peça, de forma livre. As colunas em cartão, apesar da fragilidade e impermanência do material, são monumentais e assinalam a escala da galeria de exposição. Com várias alturas e diâmetros, marcam um ritmo que lê o espaço, sendo cuidadosamente posicionadas. Geram momentos de maior e menor densidade, de maior e menor claridade, tal como acontece no jardim exterior. “Eu queria trazer o jardim para o interior”, prossegue. Alberto Carneiro concebeu Uma floresta para os teus sonhos utilizando materiais vindos da natureza. Carlos Bunga arquitectou um bosque feito de cartão, como se de uma maquete à escala real se tratasse. Perante um espaço que se impõe, o artista entende-o e (re)escreve-o através da sua instalação, não permitindo nem que o espaço se sobreponha à sua obra, nem que a sua obra se sobreponha ao espaço, estabelecendo antes um diálogo entre os dois. Este é um trabalho que se desenvolve em torno de um pensamento sobre a Arquitectura. A partir de um olhar atento acerca do lugar, o artista tece a sua transformação, recuperando memórias inscritas na sua história, o CAM que outrora foi Jardim Zoológico ou mesmo Feira Popular.
Pontualmente é possível entrar no interior destas colunas. Ao percorrê-las, somos imediatamente transportados para as elipses de Richard Serra, sendo o nosso corpo envolvido e absorvido pelas suas superfícies que criam pequenos refúgios, lugares de introspecção. Lá fora surgem algumas obras que reforçam a diluição entre o interior e o exterior, sendo algumas delas também refúgios. A ruína de um antigo poço é transformada num Beijódromo, “um sítio onde nos podemos beijar, onde podemos namorar, uma peça que quer convidar o público a estar junto”, um lugar necessário e essencial perante “o mundo polarizado, manipulado, do digital” em que vivemos e num tempo em que o ritmo acelerado, a desconexão do mundo real e a alienação face ao outro se sobrepõem à pausa, à conexão com as raízes e com o próximo. Carlos Bunga cria assim momentos de pausa que promovem o encontro connosco próprios e com o outro, constrói um espaço que é refúgio, que é casa, que se transforma e que ecoa o jardim no interior do museu. “É uma floresta que quer fazer eco da floresta que está fora e da floresta que temos dentro, que é casa”, afirma.
Um eco que espelha o lado mais íntimo do artista, que por sua vez, é projectado e reflectido em nós enquanto espectadores que nele se revêm. São assim convocados dois lugares hoje inexistentes que foram habitados pelo artista e pela sua família durante a infância, num “acto de resistência contra o apagamento da memória”, como refere. São eles, uma cama do centro de refugiados antes localizado no espaço da antiga prisão política do Forte de Peniche e a casa nº 17 em Torres Vedras, construída no âmbito do Fundo Fomentação de Habitação no pós-25 de Abril.
Por sua vez, através de Motherhood, um conjunto de ampliações de fotografias da sua mãe tiradas nos anos 80, o artista personifica todas as mulheres, reflectindo acerca da maternidade e do que é ser mulher. Cita o texto que escreveu “Ao olhar para a minha mãe percebo que a maternidade rompe fronteiras entre o íntimo e o colectivo. Ela ensinou-me que a vulnerabilidade não é fraqueza, é ponto de partida para desafiar estruturas injustas. (...) Nesta obra reflito sobre como o corpo feminino, mesmo atravessado pela violência e pelo preconceito, se pode tornar espaço de insurgência, cuidado e criação. A minha mãe fez do próprio corpo um território de afirmação recusando o silêncio e a subordinação. O cuidado materno quando pensado como gesto político é acto de insurgência, de criação e de amor.” Um retrato feminista acerca da condição da mulher é desvelado através da imagem da mãe do artista. O conceito de casa, encontra-se aqui relacionado com uma ideia de origem, de início, de raíz - a nossa primeira casa foi a barriga de uma mulher, da nossa mãe. Intimidade e arquitectura sobrepõem-se conferindo sentido à domesticidade que Carlos Bunga convoca para o espaço do museu. Arte e vida camuflam-se.
Para além disto, o corpo das suas filhas serviu de molde a alguns dos nómadas que encontramos espalhados em vários pontos da exposição. Corpos de crianças, que ainda não estão formados e, portanto, se encontram em transformação, humanos na sua condição mais genuína, ou mesmo corpos de animais, cães rafeiros, de rua, sobreviventes, entre outros, encabeçados por casas, personificam um nómada, o próprio artista, ou alguém que vive em diversos sítios e procura entender ou encontrar a sua casa ou aquilo que é para ele casa, personificando-a no seu próprio corpo. “O nómada tem a capacidade de olhar para a emigração dando-lhe um abraço. A questão do emigrante é extremamente importante”, afirma, referindo a sua própria condição de emigrante, assim como o curador da exposição Rui Mateus Amaral, curador-adjunto no Museu de Arte Contemporânea de Toronto-MOCCA, ou o próprio Gulbenkian.
Carlos Bunga foi ainda convidado a explorar e interagir com a colecção do CAM, optando por escolher peças que foram expostas com menor frequência de modo a estabelecer um diálogo e explorar afinidades entre obras suas e as de outros artistas, tais como Manuel Amado, Helena de Almeida, Túlia Saldanha, Francisco Tropa, Larry Clark, Sara Bichão, Doris Salcedo ou Lourdes Castro.
Rémy Zaugg referiu-se ao museu de arte dos seus sonhos como o lugar para o trabalho e o ser humano[2]. Segundo o curador Rui Mateus Amaral, as acções de Carlos Bunga ao conceber esta exposição, “refletem o desejo de mudar o centro da instituição — tanto física como conceptualmente — e torná-la tão pública e pessoal quanto possível.” Ao transformar o espaço do CAM e propor a sua ocupação para além da nave e do mezanino até ao átrio e ao jardim, desafiando os limites do museu, Carlos Bunga procura algo permanente, já que, segundo o próprio, “o que é permanente é a constante transformação das coisas”, para que “os museus sejam mais casas e menos museus”.
A exposição Habitar a Contradição poderá ser visitada até 30 de março de 2026 no CAM da Fundação Calouste Gulbenkian.
[1] Xavier Monteys / Pere Fuertes: “Casa collage-Un ensayo sobre la arquitectura de la casa”, Gustavo Gili, 2011.
[2] Rémy Zaugg: “The Art Museum of My Dreams or A Place for the Work and the Human Being”, Sternberg Press, 2013.

BIOGRAFIA
Joana Duarte (Lisboa, 1988), arquiteta e curadora, vive e trabalha em Lisboa. Concluiu o mestrado integrado em arquitetura na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa em 2011, frequentou a Technical University of Eindhoven na Holanda e efetuou o estágio profissional em Xangai, China. Colaborou com vários arquitetos e artistas nacionais e internacionais desenvolvendo uma prática entre arquitetura e arte. Em 2018, funda atelier próprio, conclui a pós-graduação em curadoria de arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e começa a colaborar com a revista Umbigo.
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