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Pensa nos Outros: With <3 to Palestine, na MALA
DATA
09 Dez 2025
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AUTOR
Ayşenur Tanrıverdi
Os temas da solidão, do lar, da existência, do pertencimento e do afastamento estão presentes em toda a obra de Mahmoud Darwish, o poeta palestino que escreve sobre as correntes mais profundas dos sentimentos humanos. Num dos seus poemas, ele resume uma paisagem árida numa simples ordem: «Think of Others (Pensa nos outros)».
Enquanto preparas o teu pequeno-almoço, pensa nos outros (não te esqueças da comida dos pombos).
Enquanto travas as suas guerras, pensa nos outros (não esqueças os que procuram a paz).
Enquanto pagas a tua conta da água, pensa nos outros (os que se alimentam de nuvens).
Ao regressares a casa, ao teu lar, pensa nos outros (não esqueças os refugiados nas tendas).
Enquanto dormes e contas as estrelas, pensa nos outros (aqueles que não têm onde dormir).
Estava entusiasmada enquanto caminhava em direção à Ajuda. Era a minha primeira visita à Mala, uma galeria dirigida por Sofia Montanha e Henrique Loja, para ver a exposição With <3 to Palestine, com curadoria de Supermala. A mostra apresenta uma seleção de obras do projeto homónimo, iniciado por Catarina de Oliveira há cerca de dois anos. Inicialmente, o projeto reuniu mais de meia centena de artistas de diferentes origens numa plataforma online; cada um contribuindo com uma obra, uma gota na corrente que flui em direção a uma “Palestina livre, do rio para o mar”.
Moldado em torno deste pensamento virtuoso, tal como o poema Think of Others (Pensa nos Outros), o projeto continuou a crescer, com o apoio de Sílvia Escórcio, Carolina Vieira e Mariana Silva, abrangendo agora mais de noventa artistas e quase 250 obras. A sua página de abertura apresenta o manifesto de forma clara:
Acima de tudo, queremos um cessar-fogo.
Queremos que as bombas parem.
Queremos direitos humanos universais.
Queremos respeito pelas vidas palestinianas. Respeito pela vida de todas as pessoas que foram abusadas, colonizadas e ocupadas.
Queremos humanidade.
Mais do que angariar fundos, queremos que as vozes que pedem, gritam, exigem e imploram por um cessar-fogo sejam ouvidas.
Estamos a aumentar o volume.
Desde fevereiro de 2024, o coletivo de artistas WITH <3 TO PALESTINE já angariou quase 11.000 dólares (aproximadamente 10.000 euros) para a MECA for Peace, uma organização sem fins lucrativos gerida inteiramente por voluntários.
Toda a receita obtida com as obras de arte, com preços acessíveis para incentivar uma participação mais alargada, é integralmente transferida para a MECA (Middle East Children’s Alliance), apoiando o seu trabalho humanitário.
No título da exposição, With <3 to Palestine, a substituição da palavra "Amor" pela abreviatura digital "<3" constitui, para mim, um gesto em direção à consciência coletiva, uma lembrança de como a linguagem do afeto migrou para signos codificados na era digital. Num momento marcado pela inércia digital, a escolha apresenta-se também como uma crítica ao silêncio e à passividade que acompanham a expressão mediada pela tecnologia.
Todos sabemos que a consciência partilhada em torno da luta palestiniana nasce de um princípio urgente: a oposição à guerra e a insistência no direito à liberdade e igualdade.
No livro The Hundred Years’ War on Palestine (A Guerra dos Cem Anos na Palestina), Rashid Khalidi traça esta luta ao longo de um século, desde 1917 – imediatamente após a Primeira Guerra Mundial – até 2014, mostrando que a Palestina nunca teve permissão para viver em paz, nem mesmo em períodos sem guerra oficialmente declarada. Sobretudo após a guerra de 1948, os palestinianos tornaram-se quase invisíveis: raramente presentes nos meios de comunicação ocidentais, raramente autorizados a representarem-se a si próprios em plataformas internacionais. A questão palestiniana foi reduzida exclusivamente ao “conflito israelo-árabe”, uma abordagem que minimizou as reivindicações palestinianas.
A obra Sunbird (for Mosab Abu Toha), de Nuno da Luz, inscrita numa manta de sobrevivência cuja superfície metálica capta a luz, ocupa o centro da exposição, oferecendo estes versos que escutam atentamente o apelo a uma vida livre e justa:
‘the sound of a drone
intrudes violently
it fails to move on and
leave us alone for some seconds
refuses to listen to music
or the whistling of birds.’
As obras da exposição não estão organizadas sob um único tema, mas cada uma transporta uma silenciosa rebeldia, uma presença discreta que se une a um ato maior de resistência. Algumas peças expressam-se através de jogos de palavras; outras, através de reflexos, lampejos ou formas semelhantes a vórtices. No chão branco da galeria, todas as obras parecem convergir, como se se unissem para formar uma única obra de arte unificada.
Esta sensação de plenitude surge do princípio por detrás de With <3 to Palestine e da filosofia colectiva que anima iniciativas artísticas semelhantes também dedicadas ao apoio à Palestina. Afinal, todo o esforço para evitar o apagamento de toda uma cultura torna-se profundamente importante.
Os ataques de Israel a Gaza causaram também uma devastação irreversível ao património cultural da cidade. Locais religiosos, museus, estruturas arqueológicas e edifícios históricos foram reduzidos a escombros, e as suas histórias silenciadas. A Shababeek para a Arte Contemporânea, uma importante instituição de arte na Palestina, continua a alimentar a criatividade, realizando workshops de arte para mulheres e crianças numa tenda; o seu edifício foi demolido em 2024, após os ataques ao Hospital Al-Shifa.
Escritas em 1914, as palavras do jornalista palestiniano Yusuf al-‘Isa, conhecido como um dos fundadores do jornalismo moderno na Palestina, expõem a tragédia de um povo com uma clareza devastadora:
Somos uma nação ameaçada pelo desaparecimento. Desaparecimento. A mais brutal ameaça ao direito a existir.
As guerras sempre carregaram pretextos como “defesa”, “posse” ou “proteção”, mas não trazem nada além de destruição, o exato oposto destas supostas virtudes. O absurdo da guerra continua a destruir inúmeras vidas e a desenraizar pessoas dos seus lares.
Lembro-me do pobre protagonista Giovanni Drogo, do magnífico romance de Dino Buzzati, The Tartar Steppe. Drogo, após anos de treino militar, assume finalmente o seu posto na remota Fortaleza de Bastiani, pronto para defender a sua pátria. A sua vida desenrola-se dentro dos seus muros enquanto espera por um inimigo que nunca chega. Espera tanto que acaba por ansiar a sua aparição, disposto a dar tudo apenas para o enfrentar, mesmo quando surge apenas como uma miragem no horizonte.
Mas não, Giovanni Drogo nunca chega a defender a fortaleza. O inimigo tão esperado nunca aparece. E a própria espera transforma-se numa forma de existência absurda, implacável e autodestrutiva.
Os meus pensamentos fluem do romance para o notável poema de Susana Mendes Silva the world that we will build in peace (2024):
2. think about what the world would look like if geopolitical decisions over territories had never been made without listening to the native residents. (pensa como seria o mundo se as decisões geopolíticas sobre os territórios nunca tivessem sido tomadas sem ouvir os habitantes nativos.)
3. think about what it would look like if there were no nations built on crimes, ethnic cleansing, or population displacement. (pensa como seria o mundo se não existissem nações construídas sobre crimes, limpeza étnica ou deslocação populacional.)
Só um caminho assente na igualdade e na justiça pode encerrar o conflito centenário contra a Palestina, conduzindo à paz duradoura que o povo palestiniano merece por direito.
Entre as muitas obras apresentadas na exposição With <3 to Palestina, encontrei algumas seleções feitas por diversos escritores e curadores. Gostaria, então, de concluir este texto oferecendo a minha própria seleção de obras, como uma reflexão pessoal dentro deste diálogo coletivo.
  • Bruno Bogarim, Totem, 2023
  • Catarina Bogarim, Nuvem, 2025
  • Diana Policarpo, Sem título, 2024
  • Filipe André Alves, Vesbio, 2025
  • Henrique Loja, portão 48, 2023
  • Manuel Caldeira, Sem título, (Orelha Quebrada), 2024
  • Pedro Barassi, Fogo branco, 2024
  • Tiago Borges, O Centro do Sonho, 2024
  • Tita Maravilha, Milhão, 2025
With <3 to Palestine pode ser visitada na Mala mediante marcação até 30 de dezembro. A exposição conta com a participação de:
Adrien Missika, Alice dos Reis, Alisa Heil, Ana Cardoso, André Guedes, Ana Grebler, Ana Manso, Andreia Santana, Beatriz Neves Fernandes, Bruno Bogarim, Carolina Vieira, Carla Dias, Catarina Bogarim, Catarina de Oliveira, Constança Entrudo, Diana Policarpo, Elisa Pône, Elmira Abolhassani, Filipe André Alves, Gisela Casimiro, Gonçalo Sena, Guilherme Curado, Guilherme Figueiredo, Henrique Biatto, Henrique Loja, Inês Mendes Leal, Inês Raposo, Isabel Carvalho, Jabulani Maseko, Joana Escoval, Joana Trindade Bento, João Vasco Paiva, Lara Dâmaso, Madalena Anjos, Maja Escher, Manuel Caldeira, Marcelo Alcaide, Maria Ana Vasco Costa, Maria Palma Dias, Maria Ventura, Mariana Tilly, Mauro Cerqueira, Mingyu Wu, Neusa Trovoada, Nikolai Nekh, Nuno da Luz, Pedro Barassi, Pedro Barateiro, Pedro Liñares, Renato Chorão, Sara Graça, Sofia Montanha, Tiago Baptista, Tiago Borges, Tita Maravilha, Uriel Orlow.
BIOGRAFIA
Ayşenur Tanrıverdi é uma escritora sediada em Istambul. Vive em Lisboa desde setembro de 2022. Estudou na Universidade de Istambul e é autora de duas obras de ficção literária publicadas. Colaboradora regular do Cumhuriyet, um importante jornal turco, onde escreve sobre a cultura portuguesa. Os seus ensaios e textos críticos sobre teatro, literatura e arte contemporânea também têm sido publicados em várias revistas de arte.
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