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What is home without a mother – I mean, an other?
DATA
29 Fev 2024
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AUTOR
Laila Algaves Nuñez
Um fonógrafo que é, também, um fogão à gás; uma cama que guarda, debaixo do colchão, um piano de pé; uma mesa de jantar com as loiças sempre afixadas sobre o tampo, transformadas em peça de parede decorativa após a refeição.

Um fonógrafo que é, também, um fogão à gás; uma cama que guarda, debaixo do colchão, um piano de pé; uma mesa de jantar com as loiças sempre afixadas sobre o tampo, transformadas em peça de parede decorativa após a refeição. Todos os móveis na casa da curta-metragem O Espantalho, filme realizado por Buster Keaton em 1920, têm uma vida dupla; por vezes, múltipla. Mestre do cinema de comédia, Keaton oferece-nos uma brilhante sequência sobre a domesticidade moderna naquela que seria, talvez, a sua máxima eficiência, deixando pairar sobre nós, contudo, uma interrogação assombrosa: quando o quadro de pratos é virado ao contrário, revela um letreiro estampado com a frase “What is home without a mother?” (“O que é um lar sem uma mãe?”). Um comentário socioecónomico dos mais eloquentes, condensado num breve e silencioso ensaio cinematográfico. Mais ainda, uma pergunta que nos atravessa ao íntimo, e faz morada ali onde se disfarçam e se eternizam as nossas memórias caseiras, familiares, afetivas.

Licenciei-me em Cinema, mas foi só através da exposição Casa Commedia, de Isa Toledo, que conheci esta obra-prima de Keaton. A artista brasileira, mas com vida também dupla ou múltipla – com mãe inglesa, Isa já viveu em Dubai, Berlim e, já há muitos anos, em Lisboa –, descreve a tal cena ao percorrer a constelação de arquivos, objetos e referências intertextuais na origem da sua segunda exposição individual, na Galeria Miguel Nabinho. Foi também aí, mas em 2021, que estreou a solo as suas obras entre as paredes brancas, com a mostra pick a card any card. Aquela e esta exposição, assim como todo o seu corpo de trabalho, refletem um gesto e um hábito muito particulares da artista, que está sempre a ler, a escrever e reescrever, a guardar, colecionar, rememorar. Ao ouvi-la desenvolver sobre os próprios processos criativos, numa lucidez espantosa, as palavras que costura – seja nas fitas de um sapato vermelho, sob um espelho, sobre um telefone, ou por dentro de utensílios de cozinha de metal – vão deslizando por sentidos outros, unindo-se e desfazendo-se em combinações inusitadas; poderiam ser óbvias, mas não o são.

Como Keaton, Isa domina o jogo da comédia, e à questão oferecida pelo cineasta em O Espantalho adiciona mais uma camada de brincadeira séria: em We have to stay here (2023), a frase se torna “What is home without a mother another”, acenando à psicanálise com um ato falho (dizer a mother, quando se quer dizer another) que amplia a inquietação original, amplia a comédia, e amplia, por fim, a casa. O riso é, justamente, este mecanismo capaz de abrir caminhos e construir pontes entre um e outro, entre o interior subliminar e o exterior repentino, entre o privado e o social. Por trás da exposição, o próprio modo de criar e fazer da artista abre-se a este improviso, conectando os seus interesses pessoais a peças ofertadas, objetos que fazem referência à vida de bairro, aos ofícios presentes no seu entorno. “Eu comecei a pensar bastante naquilo que havia na Baixa, onde eu moro […]. Havia sobretudo os carimbos que se fazem na Franco, a gravação que é feita em qualquer tipo de metal, o bordado que eu faço em casa com as linhas que são da retrosaria de lá. E depois, por exemplo, havia a Casa da Bandeira”, diz, em conversa filmada com Miguel Nabinho. O “encantar”, a que a artista identifica o propósito da piada, poderia também ser este corpo vivo das ruas, do encontro corriqueiro ou acidental, dos atos poderosos de quem presenteia, cozinha, conta histórias, lembra os mortos, ri junto.

Assim, tudo o que vemos apela a uma situação neste limiar do doméstico – em última instância, nas fronteiras do conhecido. As bandejas de aço convidam a um banquete partilhado; os dois telefones, ligados por um fio, conversam; os carimbos, diante de uma mesa comprida, vão traçando e acumulando as marcas de mãos, usos e subjetividades várias. Segundo Freud, que muito se debruçou sobre a temática do humor, o chiste – no alemão witz, “gracejo” – é “a habilidade de encontrar similaridades entre coisas dissemelhantes, isto é, descobrir similaridades escondidas”[1]. O resultado é a transformação do drama individual num trágico existencial, “salvando-se pelo humor; uma constatação de que nada foi sério fora dos nossos campos imaginário e simbólico”[2]. Em outras palavras, extravasar a casa, do confidencial ao social, é aquilo que nos garante alguma nova, necessária e alegre vitalidade

Casa Commedia, de Isa Toledo, está patente na Galeria Miguel Nabinho até 16 de março de 2024.

 

[1] FREUD, Sigmund. (1927). “O humor”. In: FREUD, Sigmund. (1974). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, v. XXI, pp. 18-19.
[2] RIBEIRO, Maria Mazzarelo. (2008). “Do trágico ao drama, salve-se pelo humor!”. Circulo Brasileiro de Psicanálise. Revista Estudos de Psicanálise, nº 31, outubro, p. 109.

BIOGRAFIA
Laila Algaves Nuñez é investigadora independente, escritora e gestora de projetos em comunicação cultural, interessada particularmente pelos estudos de futuro desenvolvidos na filosofia e nas artes, bem como pelas contribuições transfeministas para o pensamento social e ecológico. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema (PUC-Rio), mestre em Estética e Estudos Artísticos (NOVA FCSH) e doutoranda em Estudos Artísticos - Arte e Mediação (NOVA FCSH) com bolsa FCT, pesquisa o potencial da escrita e da ficção como ferramentas para a salvaguarda dos Direitos da Natureza, propondo e participando em projetos de investigação-ação que atravessam as intersecções entre palavra, performance, imaginação e ativismo ecológico.
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