O convite para o espectáculo Cooperativa (Teatro do Bairro Alto, 24 a 27 de Abril), dos bailarinos Ana Rita Teodoro, Clarissa Sacchelli, Daniel Pizamiglio, Filipe Pereira, João dos Santos Martins e Sabine Macher, culmina com a pergunta “O que pode uma batata?”
Talvez de modo insuspeito, a batata é um agente cultural global. Desconhecida na maior parte do planeta até ao século XVII, senão pelos povos andinos da América do Sul, de onde é originária, que já a cultivavam há cerca de 8000 anos, a batata é um objecto reconhecível por todos (ou quase todos) independentemente da classe ou geografia. Podemos hoje não saber nomear a quinoa, ou identificar este espécime vegetal, ou em décadas precedentes o kiwi, mercê de exotismos ou modismos, contudo, a batata é um elemento omnipresente na nossa realidade alimentar.
Com efeito, a performance da batata, isto é, o seu movimento, partilha os trânsitos que as expansões globalizantes provocaram no mundo e nas sociedades. Globalização de ideias, mercados, comportamentos, onde não podemos isentar a escravatura, e a dominação territorial e religiosa.
Ao entrar na sala de teatro no TBA, somos recebidos pela sala preta desnuda, contendo pouco mais do que os objectos da própria caixa teatral. O público pode deambular pela ampla área da plateia; o palco está reservado para uma surpresa ao final: as batatas que assam em cima dos projectores de luz, a serem comidas na última cena. Os performers, pelo meio do público, habitam o espaço e vão-no preenchendo gradualmente, através da sua energia de presença, viva, irradiante e receptiva.
Há batatas amontoadas, de vários feitios e tamanhos, dispersas pelo espaço. Os performers vão executando vários exercícios não codificados, talvez, ainda assim, um ritual, entrosando-se entre si e com os espectadores, levando a uma activação sensorial colectiva. São entregues batatas aos espectadores, fazem-nas circular na roda que se formou, rolam-nas pelo chão entre todos. Os bailarinos alinham uma batata após outra, numa risca recta ou serpenteante pelas tábuas negras da plateia. Cria-se um desenho que logo se apaga, é um acaso e um desejo criando elos evanescentes. Todos os gestos são de uma aparente simplicidade, uma busca singela como se Já que aqui estamos todes… e assim o acontecimento existe. O exercício de procura segue e robustece-se. Os espectadores – entretanto convocados a participantes – interagem com os intérpretes, indistinguindo funções e categorias. Com efeito, sem participação (uma modalidade de simbiose, nos termos da ecologia), o espectáculo não era. Então, as batatas são passadas em barda, por baixo dos joelhos, as pessoas sentadas no chão. Um frenesi e urgência que toma conta de todos. É um ambiente convivial, mesmo entre desconhecidos.
As acções e gestos repetidos criam uma máquina-corpo, orgânico e accional. Em contínuo, vemos surgir uma mecânica do trabalho, alguém até entoa uma cantilena em tom grave, um coro múrmuro que cresce. A isto não é alheio o próprio título do espectáculo Cooperativa, aludindo às associações de produtores numa dada actividade económica, que em conjunto decidem, executam, gerem, tentando uma horizontalidade de importâncias. Já a sinopse leva a esse caminho: “modos transformativos para a construção de um bem comum”. Cooperação que surge em contramão com competição, extrativismo, protagonismo, produtividade, todos signos incontestados da experiência contemporânea.
De todo o modo, se, por um lado, esta peça estimula a força do colectivo, a negociação tácita do que há a fazer, por outro, anuncia-se o ilógico do trabalho. O que a peça tem de sensibilidade e de doçura, tem também de absurdo, isto é, a ausência de uma causalidade forçosa. O acaso da ocorrência é a sua motivação, no conjunto dos sujeitos presentes. É a convivialidade que gera o momento – e o seu seguinte.
De repente, um pequeno grupo, num círculo ombros com ombros, tem a missão de transportar uma saca de batatas. Saca que é ora a camisola puxada à frente da barriga em cova, ora um molho de roupa; algumas batatas caem e são apanhadas. O banal circunstancial é transido de valor. E de repente os performers vão em círculos velozes, uns atrás dos outros, uns que chamam os outros. Estão a brincar, o sorriso na cara denuncia-os no gesto gratuito e imotivado. Daniel, de repente nu, porque se trata de brincar, explorar; a pele humana e a casca da batata aparentam-se e dissemelham-se. E de repente, Ana Rita larga num pranto. E de repente, João irrompe numa corrida. E de repente, Clarissa nasce com a sua voz. E lentamente, Sabine joga conversa fora. E lentamente Filipe, vem ao pé de ti.
A batata passa por vários matizes simbólicos: transmissão, partilha, cuidado. Passada de mão em mão, olhos nos olhos, o tubérculo singular que nos enche a barriga (e também totem de Axomama, deusa inca da batata) é sinónimo de intimidade e solidariedade. Batata é ainda uma interface que medeia não só o labor e o colectivo, mas também o sujeito e o objecto: é o corpo que manuseia a batata, ou é a batata que que faz o corpo dançar? Se num primeiro momento, o vegetal é manipulado pelos participantes, legado corpo a corpo, nesse passo, passará de objecto a agente, intervém como protagonista da dança. Perante um conjunto indefinido de corpos (performers ou espectadores), a batata toma a dianteira e com ela cada um individualiza-se. Uma batata é uma vida, um propósito, um gesto. O tubérculo funciona como um dispositivo que faz surgir a centelha do singular, tal um medium para conhecer mundo. Batata é como interface sensível e háptico.
Percebendo as condições materiais que nos envolvem, Cooperativa é um jogo de sensorialidade, uma produtividade do ócio e do viço brincante, dando forma ao aleatório, à pausa, tendo em conta o devir histórico do movimento transatlântico e global da batata. Heuristicamente batata devém alegria material. Por último, a batata retoma a sua função básica: é comida pelos convivas.
António Figueiredo Marques não escreve ao abrigo do AO90.